top of page

A Última Palavra: Sete Crónicas sobre o Renascimento da Linguagem

abr 4

27 min de leitura

6

10

0

A Rosa do Keve girando silenciosamente sob um céu de gestos e constelações verbais
A Rosa do Keve girando silenciosamente sob um céu de gestos e constelações verbais

Dedicatória

A todos os que já tiveram algo a dizer

e não encontraram quem os escutasse.


A quem carrega no peito

uma promessa que nunca foi dita em voz alta.


Aos que choraram em silêncio,

sorriram com coragem,

e resistiram com gestos pequenos —

mas cheios de verdade.


Dedico esta obra aos meus antepassados,

que me ensinaram a honrar o verbo e o silêncio,

aos meus filhos e netos,

para que saibam que a linguagem mais forte

é aquela que vive no coração dos que amam sem ruído,

e à terra onde nasci e me tornei,

Angola e Portugal —

dois nomes, uma raiz.


E dedico também

a ti que me lês,

porque ao abrires este livro, tornas-te parte

da travessia da Última Palavra.


João Elmiro da Rocha Chaves, Mákalé

Guardião do Gesto Vivo

Filho da Cela, Navegador do Keve

Poeta do Silêncio com Alma de Sol


Prefácio

Assinado por João Elmiro da Rocha Chaves, Mákalé


Há mundos que nascem do silêncio,

outros do grito.

Mas o mais difícil de todos — o mais humano —é o mundo que nasce da escuta.


Durante décadas, atravessámos um tempo onde tudo se dizia, mas pouco se compreendia.

Onde as palavras se multiplicavam como folhas ao vento,

mas a raiz — o sentir, o gesto, a alma — faltava.


Este livro que aqui vos apresento não nasceu para ser lido com pressa.

Ele é um compasso.

Um chamado à escuta profunda.


Não é um manual.

É uma travessia.


Ao longo destas sete crónicas, revisitamos um mundo que, tendo perdido o valor da palavra, precisou reaprender a escutar antes de falar, a calar antes de julgar, a recordar antes de inventar.


Mais do que uma história linear, esta obra é um mapa espiritual de reencontro com a linguagem verdadeira — aquela que não vive nas bocas, mas nos gestos;

não sobrevive nos livros, mas nos silêncios partilhados;

não se impõe, mas brota onde há presença.


A Última Palavra, como descobrirão, não é uma palavra.


É um gesto.

É um olhar.

É o corpo inteiro a dizer: “Estou contigo.”


A cada capítulo, os Guardiões da Linguagem vão recordando aquilo que muitos esqueceram: que antes da fala, houve vibração;

antes da escrita, houve respiração;

e que no fim de tudo, o que resta é o que se vive junto — sem ruído, mas com verdade.


Convido-vos, portanto, a não apenas lerem esta obra.

Mas a sentirem-na com o corpo inteiro.


Porque a verdadeira palavra não é dita.

É dançada, partilhada, semeada no outro.


E é com essa palavra que vos abraço.


João Elmiro da Rocha Chaves, Mákalé

Guardião da Memória

Mestre do Verbo Silencioso

Filho da Cela e do Keve


Crónica I – As Herdeiras da Memória

Capítulo I – O Chamado da Torre Adormecida


“Toda palavra esquecida

espera, calada, a mão que a diga —

não com língua,

mas com alma.”

— Mákalé


Na madrugada derramada sobre as montanhas de Cela, quando até os galos sonham e os espíritos antigos roçam o limiar entre o que foi e o que ainda há-de ser, Kaela despertou com um frémito no peito. Não era susto. Era lembrança antes da lembrança.


A Torre que lhe servira de abrigo e aprendizagem desde menina — silenciosa durante décadas — cantava.


Não com palavras audíveis, mas com sílabas que vibravam nas pedras, como se cada tijolo procurasse reencontrar o som que lhe deu nome quando foi moldado.


Kaela vestiu o manto azul do entardecer, bordado pela sua avó com fios de histórias caladas, e subiu os degraus em espiral com o cuidado de quem pisa as veias de um ser vivo. Ao atingir o andar mais alto, encontrou a Sala do Eco — há muito fechada — com a porta entreaberta.


Ali, no centro da abóbada, repousava a Rosa do Keve, murcha mas ainda girando em espasmos tímidos, como o coração de um ancião que resiste ao último fôlego.

E foi então que escutou.

“Lembra-te do que nunca disseste.”


A voz não vinha de fora.

Nem de dentro.

Vinha de antes.


O Arquivo-Vivo

Sentado numa cadeira feita de raízes entrelaçadas, esperava por ela o velho Nzolani, o último dos Arquivos-Vivos da região.

Os seus olhos tinham a cor da terra molhada e o olhar de quem viu nascer não só homens, mas vocábulos.

Disse-lhe:

— Kaela… a Torre despertou porque tu despertaste.

As palavras adormecem quando deixamos de sentir.

Mas quando alguém as sonha de novo… elas acordam.


Ela aproximou-se em silêncio, como quem visita um túmulo, e sentou-se aos pés do ancião.

— Que está a acontecer, Nzolani?

— O mundo está a esquecer como se fala sem ferir. Está a nomear tudo, mas a não sentir nada.


Por isso, chegou o tempo de buscar o que não se pode ensinar.

As letras que vivem fora do alfabeto.

As palavras que só existem quando se vivem.

O Rito das Três Presenças

Nzolani entregou-lhe três pequenos objetos envoltos em folha de mulemba:

  1. Um grão de sal vermelho — símbolo do que preserva e corrói;

  2. Um fragmento de pele de tambor, com ressonância ancestral;

  3. Uma pedra oca onde dormia um som.


— Kaela, não irás sozinha.

Procura por Tariq, o que lê o que não está escrito.

E por Imani, a que escuta mesmo o que nunca foi dito.


O caminho começará nas margens do Keve.

Mas terminará onde a palavra se dobra de novo sobre si mesma.

Kaela inclinou-se, tocou o chão com a testa e disse, não com voz, mas com gesto:

“Aceito ser memória de quem foi esquecido.”


E nesse instante, a Rosa do Keve deu um giro inteiro, completo, pela primeira vez em 33 anos.

A jornada começara.

Kaela, na torre ancestral da Cela, escuta o chamado da Rosa do Keve pela primeira vez em décadas. Diante do velho Nzolani — o último Arquivo-Vivo — inicia-se a jornada para reencontrar as palavras esquecidas, não com a língua… mas com a alma.
Kaela, na torre ancestral da Cela, escuta o chamado da Rosa do Keve pela primeira vez em décadas. Diante do velho Nzolani — o último Arquivo-Vivo — inicia-se a jornada para reencontrar as palavras esquecidas, não com a língua… mas com a alma.

Capítulo II – As Primeiras Palavras Perdidas

“Há palavras que vivem nas lágrimas.

Não foram escritas, nem ditas —

foram sentidas tão profundamente

que se tornaram silêncio com nome.”

— Mákalé


A alvorada ainda se coava entre os ramos altos do mulemba quando Kaela deixou a Torre, levando consigo o grão de sal, a pele de tambor e a pedra oca — não como objetos, mas como chaves vibratórias. O seu corpo tornara-se verbo, e cada passo, uma invocação da memória viva.


O rio Keve, lá em baixo, serpenteava como frase antiga riscada por mil bocas. Kaela desceu, acompanhada pelo silêncio e por um pressentimento — não de medo, mas de reconhecimento. Algo estava à sua espera. Não algo. Alguém.


O Leitor dos Mapas Invisíveis

Às margens do rio, sob a sombra de um embondeiro velho como a primeira palavra, Tariq desenhava linhas sobre o chão com um ramo seco. Mas não traçava estradas nem nomes. O que desenhava era tempo que se move.


Kaela observou em silêncio.

Ele parou.

Olhou-a.

E sorriu como quem lê um texto que já conhecia antes de o ver.

— Chegaste, filha do verbo adormecido.

— És Tariq?

— Sou aquele que decifra o vento. E tu és aquela que o vento vem buscar.


Juntos sentaram-se à beira do Keve.

Kaela explicou o chamado da Torre, a Rosa do Keve, o eco do que nunca fora dito.

Tariq ouviu sem interromper.

Depois tirou do bolso um pedaço de pergaminho que, ao ser aberto, não tinha escrita visível.

— Isto — disse ele — é o Mapa das Águas Não Nascidas.


Só mostra o caminho a quem carrega uma pergunta sincera.

Kaela fechou os olhos.

“Onde estão as palavras que nunca foram ditas,

mas que ainda gritam dentro de nós?”


O mapa brilhou.

E desenhou uma linha líquida…

rumo ao Oceano Índico.


O Cântico Submerso

Dias depois, acompanhados por Imani, que se lhes juntara sem anúncio, como quem sempre ali esteve, chegaram à costa onde o mar encontra a terra sem prometer permanência.


Imani era feita de presença silenciosa. Os seus olhos escutavam. O seu andar era pausa entre ideias. Quando pousava a mão sobre o ombro de alguém, o medo perdia nome.


Naquela noite, enquanto a maré subia em prece, os três prepararam o mergulho até o Recife de Kalunje, onde, segundo Nzolani, dormia a primeira letra viva: Êh — a letra que só se manifesta quando o choro não pede consolo, mas escuta.


O Mergulho para Dentro

Kaela submergiu.

Entre corais em forma de espirais linguísticas, sentiu o coração acelerar. Não de falta de ar — de excesso de lembrança.


Viu imagens não suas, mas herdadas:

mulheres à margem de fogueiras proibidas,

homens com vozes arrancadas da garganta,

crianças a sonhar palavras que nunca aprenderiam a dizer.

E sem querer… chorou.

Mas naquele mar, as lágrimas não se perdiam.

Transformavam-se em sílabas líquidas.


O Despertar de Êh

A água tremeu.

Um som profundo, como um útero a cantar, preencheu o espaço.

E do fundo do recife, ergueu-se uma letra feita de luz salgada — curva, suave, tremeluzente.


Êh.

A letra do choro com sentido.

Do luto que ainda busca colo.

Do amor que não pôde ser dito a tempo.

Imani tocou-a. E a letra inscreveu-se, invisivelmente, na palma da sua mão.

Não como símbolo.

Como ressonância.


O Regresso à Areia

Ao regressarem à areia, Tariq disse:

— Já encontrámos a primeira palavra perdida.

Kaela respondeu, olhando o céu:

— Mas não a dizemos.

Apenas carregamo-la.


E ao longe, a Rosa do Keve — mesmo tão distante — girou uma vez, como se tivesse sentido a vibração da água.

Nas profundezas sagradas do Recife de Kalunje, Kaela mergulha entre memórias herdadas e silêncios antigos. Ao lado de Tariq e Imani, presencia o nascimento de Êh — a primeira letra viva, revelada apenas pelo choro que não pede consolo, mas escuta.
Nas profundezas sagradas do Recife de Kalunje, Kaela mergulha entre memórias herdadas e silêncios antigos. Ao lado de Tariq e Imani, presencia o nascimento de Êh — a primeira letra viva, revelada apenas pelo choro que não pede consolo, mas escuta.

Capítulo III – O Deserto da Sede e a Letra da Fome de Voz

“A sede mais profunda não é de água, é de escuta. Quem nunca foi ouvido carrega uma boca seca na alma.”

— Mákalé


Tendo escutado a vibração líquida de Êh, os três viajantes voltaram-se para o interior, onde a terra estala e a palavra desaparece com o vento. Era tempo de atravessar o Saara Vivo, conhecido não pelos mapas, mas pelas almas que nele se esqueceram de si.


A paisagem tornou-se mineral, nua, como a superfície de um segredo. Cada passo deixava rasto de calor e interrogação. O céu brilhava não como bênção, mas como espelho impiedoso.


O Deserto das Vozes Secas

No coração da vastidão, o vento contava histórias sem palavras. Não soprava para refrescar, mas para lembrar.


Tariq escutava os redemoinhos como quem lê um manuscrito antigo. Imani fechava os olhos, sentindo os silêncios entre os grãos de areia. Kaela caminhava com o olhar no horizonte — não à procura de algo, mas à espera de um sinal.


Foi Imani quem o viu primeiro: um círculo perfeito de pedra plana no meio do deserto — a Tábua de Areia. Nela, areia movimentava-se sozinha, formando letras inacabadas, frases suspensas, sons por nascer.


Os Djinns da Sede

Três figuras ergueram-se da areia — translúcidas, leves, com olhos como cristais rachados. Não falavam. Moviam-se com perguntas. Um apontou para o céu. Outro, para a garganta de Kaela. O terceiro, para os ouvidos de Imani.

A mensagem era clara:

"O que é sede… quando a alma nunca foi escutada?"


Kaela ajoelhou-se e escreveu na areia:

“Sede é ter nome e nunca ser chamado.”


O vento parou. A areia assentou.

E no centro da Tábua, nasceu uma letra quente e granulada, feita de luz seca.


Ša.

A letra da fome de voz. Da sede de ser ouvido. Da presença ignorada.


O Rito do Carregamento

Imani recolheu a letra com ambas as mãos em concha. Ela não brilhou. Apenas pulsou. Entrou-lhes nos ossos, como um eco que vibra eternamente à espera de escuta.


Ao deixarem a Tábua, ninguém falou. Não por respeito, mas por reverência. O deserto dissera tudo.


E ao longe, a Rosa do Keve, na torre, girou mais uma vez — breve, precisa, como se assentasse em silêncio novo.


Kaela, Tariq e Imani diante da Tábua de Areia, sob o sol inclemente do Saara Vivo, escutam a areia formar perguntas esquecidas. Do silêncio ardente, nascem os djinns e com eles Ša — a letra que não pede voz, mas escuta.
Kaela, Tariq e Imani diante da Tábua de Areia, sob o sol inclemente do Saara Vivo, escutam a areia formar perguntas esquecidas. Do silêncio ardente, nascem os djinns e com eles Ša — a letra que não pede voz, mas escuta.

Capítulo IV – A Letra do Silêncio no Tronco Partido

“Há silêncios que gritam, e gritos que são puro vazio.

O silêncio verdadeiro não cala: escuta-te.”

— Mákalé


Deixando para trás o deserto ressequido onde a sede era de voz e de presença, os três viajantes mergulharam no sul denso e húmido, onde as palavras já não são ditas — são absorvidas pela mata.


Era a mata da Kissanga Kungo, que se ergue aos pés do grande Keve com a altivez das velhas mães — severa, acolhedora, misteriosa.

Ali, cada folha era uma pausa.

Cada tronco, uma interrogação sem urgência.

O silêncio entre os sons não era ausência: era a própria linguagem da terra.

O rio Keve corria lento, como quem escuta.


O Tronco Partido

Guiados por um sussurro que não vinha do ouvido, mas da pele, encontraram a clareira oculta onde o Tronco Partido descansava.

Não era majestoso.

Era velho, tombado, coberto de musgo e memória — como uma frase interrompida que ainda deseja ser terminada.

Os anciãos chamavam-no de “tronco vivo”, pois dizia-se que, mesmo morto, ouvia.

Ali, os viajantes ajoelharam-se com reverência.

Kaela encostou a testa à casca.

Tariq desenhou círculos no chão com os dedos.

Imani sentou-se em silêncio absoluto, como se o próprio ar a escutasse.

E esperaram.


O Som Invisível

No início, nada.

Depois…

algo.

Não era som.

Era pressão. Vibração. Pulso.


Uma melodia sem notas percorria o interior do tronco.

Era feita de ausências.

De frases caladas no peito de mulheres esquecidas.

De orações não rezadas por medo de serem escutadas.

Imani murmurou:

— Este não é o silêncio do vazio.

É o silêncio do que nunca pôde ser dito.


O Nascimento de Ŷam

Então, como se tivesse ouvido o gesto de escuta, o tronco vibrou.

E do seu interior, entre casca e sombra, surgiu Ŷam —

uma letra feita de sombra translúcida e luz morna.

Não voava.

Não brilhava.

Flutuava em quietude.


Ŷam é a letra do espaço.

Do silêncio fértil.

Do ato de escutar com o corpo inteiro.

Ela não se inscreveu em pergaminhos.

Não se gravou na pele.

Instalou-se no espaço entre os três.

E ali ficou, invisível mas presente, como o respirar conjunto de três almas unidas por escuta verdadeira.


O Agradecimento

Antes de se erguerem, Kaela pousou a palma da mão sobre o tronco.

— Obrigada… por teres caído sem deixar de ouvir.


O tronco estremeceu uma última vez.

Depois calou-se.

Mas o silêncio agora era outro:

não vazio,

mas cheio de escuta.


E, como se sentisse a vibração vinda da mata, a Rosa do Keve, na longínqua Torre da Cela, girou uma vez — lenta, serena, completa.


Na mata da Kissanga Kungo, Kaela, Tariq e Imani encontram o Tronco Partido — memória viva de palavras caladas. Ao escutarem o silêncio com o corpo inteiro, despertam Ŷam: a letra invisível que habita o espaço entre aqueles que verdadeiramente se escutam.
Na mata da Kissanga Kungo, Kaela, Tariq e Imani encontram o Tronco Partido — memória viva de palavras caladas. Ao escutarem o silêncio com o corpo inteiro, despertam Ŷam: a letra invisível que habita o espaço entre aqueles que verdadeiramente se escutam.

Capítulo V – O Abismo Sem Nome e a Letra do Medo


“O medo é a caverna onde guardamos tudo o que ainda não sabemos nomear.

Quem o olha nos olhos, descobre palavras novas dentro do peito.”

— Mákalé


Tendo escutado o silêncio fértil de Ŷam, os três viajantes seguiram para oeste, onde a terra já não se abre em caminhos, mas se parte em feridas.

A paisagem tornava-se cada vez mais mineral, agreste, sem promessa.

O verde da mata desaparecia, e o ar ganhava um cheiro seco — o cheiro do medo antigo.


No horizonte, um rasgo na terra anunciava o destino:

o Desfiladeiro de Zemba Nzé, conhecido pelos povos mais antigos como


“a boca que come os nomes.”


Nenhum mapa o marcava.

Nenhum ancião o descrevia sem estremecer.


A Chegada ao Fim do Chão

Ao aproximarem-se, Kaela sentiu as pernas fraquejarem.

Tariq perdeu o fôlego.

Imani parou.


À frente deles, o mundo terminava — abruptamente, sem moldura.

O chão desaparecia como página rasgada.

Lá em baixo, um escuro tão denso que parecia conter som.


O silêncio ali não era repouso.

Era pressão.


Imani disse:


— Este lugar não quer ser olhado.

Mas espera ser visto.


A Descida ao Medo

Não havia escada.

Não havia cordas.

A única forma de descer… era entregar-se.


Tariq foi o primeiro.

Saltou, mas não caiu.

Foi absorvido lentamente, como quem mergulha em sonho espesso.


Kaela e Imani seguiram.


Dentro do abismo, não havia luz.

Mas também não havia cegueira.

A escuridão ali era viva.

Revelava, aos poucos, o que se escondia no íntimo.


Os Medos Revelados

Tariq viu-se rodeado por multidões… mas era invisível.

Falava — ninguém ouvia.

Desenhava mapas — ninguém os seguia.


Imani viu rostos que amava, distanciando-se sem motivo.

Tentava alcançá-los, mas o chão fugia-lhe dos pés.

Sentia-se esquecida antes de ser conhecida.


Kaela viu-se no topo da Torre, rodeada de livros em branco.

Sabia todas as palavras — mas nenhuma tinha significado.

A linguagem, em sua boca, tornava-se poeira.


E então, juntos, deixaram de fugir.

Aceitaram o medo.

Abraçaram o vazio.

E falaram.


Não em voz alta.

Mas em sentido puro.


“Tenho medo de não ser necessário.” — Tariq

“Tenho medo de desaparecer sem deixar rasto.” — Imani

“Tenho medo de que a palavra deixe de ser sagrada.” — Kaela


O Nascimento de Qwha

O abismo tremeu.


Da sua profundidade ergueu-se uma figura informe — feita de carvão e bruma, com olhos que não julgavam.


Era Qwha —a letra do medo assumido.

A vogal do não-dito.A sílaba escondida sob a língua.


Ela não brilhou.

Não falou.


Apenas aceitou.


E gravou-se em silêncio no corpo dos três.

Não como peso,

mas como chave.


O Regresso à Luz

A subida foi leve.

Não porque o caminho fosse fácil,

mas porque a vergonha ficara no fundo.


Ao regressarem à superfície, a luz parecia nova.

O céu, mais aberto.

O ar, mais respirável.


E no coração de Cela, a Rosa do Keve rodou três vezes —

uma por cada coragem.


À beira do desfiladeiro de Zemba Nzé, Kaela, Tariq e Imani descem ao abismo onde os medos tomam forma e o silêncio pesa. Ali, encontram Qwha — a letra oculta que apenas se revela quando o medo é aceite como parte da verdade.
À beira do desfiladeiro de Zemba Nzé, Kaela, Tariq e Imani descem ao abismo onde os medos tomam forma e o silêncio pesa. Ali, encontram Qwha — a letra oculta que apenas se revela quando o medo é aceite como parte da verdade.

Capítulo VI – A Criança e a Promessa Não Dita


“Prometer em silêncio é plantar uma flor no coração do tempo.

A alma que cumpre o que nunca prometeu em voz alta,

é a mais fiel das guardiãs.”

— Mákalé


Tinham enfrentado o medo.

Não para o vencer, mas para lhe dar nome.

Agora, Kaela, Imani e Tariq aproximavam-se das montanhas baixas do centro de Portugal, onde o silêncio é outro —

feito de infância enterrada e saudade por germinar.


Chegavam a Bezelga, terra onde a vida simples sempre se fez em voz baixa,

onde os campos guardam memórias melhor do que as bibliotecas,

e onde, diziam os velhos, há promessas que nunca se disseram… mas ficaram à espera.


A Aldeia do João

Kaela pisava aquela terra como quem caminha sobre um nome esquecido.

A avó contava-lhe que ali vivera João Elmiro, menino calado mas de olhos faladores,

conhecido entre os lavradores como Mirito —

que entregava cartas aos amigos do avô e guardava as suas próprias escritas no peito.


A entrada na aldeia fez-se sob um céu cinzento e um vento húmido que cheirava a lenha e batata acabada de arrancar.


No meio das hortas, ao lado de uma cerejeira solitária, havia um portão de ferro enferrujado, trancado… por dentro.


O Portão da Promessa

Imani aproximou-se.

Sentiu o portão vibrar.

Não com medo.

Mas com espera.


Kaela olhou-o com espanto — o ferro tinha gravado na base o desenho de uma flor.

Não era decorativa.

Era a Rosa do Keve, ainda fechada.


Sem dizer uma palavra, Tariq colocou a palma da mão no ferro.


E nesse instante, os três viram a mesma imagem:


Um menino de seis anos, sentado no chão, a escrever com um pau numa pedra.

Ao lado dele, um carro de arame.

No peito, um segredo.


A Promessa Não Dita

A imagem intensificou-se.


O menino desenhava letras no chão, murmurando:


“Um dia… vou guardar todas as palavras do mundo…

para que ninguém mais se esqueça de como se diz amor.”


Mas ninguém o escutava.


Era uma promessa.

Feita ao vento.

Ao Keve.

A si mesmo.


E nunca dita em voz alta.


O Brinquedo Enterrado

Kaela caminhou até à cerejeira.


Ajoelhou-se.


Cavou com as mãos até encontrar um pequeno carro de arame, enferrujado mas inteiro.


Ao tocá-lo, o portão abriu-se suavemente.

A imagem do menino desapareceu.

E da raiz da cerejeira brotou uma luz suave e quente.


Ṕa.

A letra da promessa feita sem palavras.

Do compromisso gravado no corpo antes de ser dito.

Do amor que espera décadas… mas não esquece.


Tariq segurou a letra com as duas mãos.

Ela dissolveu-se em calor.


E a Rosa do Keve, na torre longínqua…

floriu um novo botão.


Na Bezelga, junto à cerejeira solitária, Kaela descobre o pequeno carro de arame enterrado e, com ele, a promessa silenciosa de um menino chamado Mirito. Da terra brota Ṕa — a letra do compromisso nunca dito, mas fielmente cumprido.
Na Bezelga, junto à cerejeira solitária, Kaela descobre o pequeno carro de arame enterrado e, com ele, a promessa silenciosa de um menino chamado Mirito. Da terra brota Ṕa — a letra do compromisso nunca dito, mas fielmente cumprido.

Capítulo VII – A Letra do Riso e a Cura pela Alegria


“O riso não é fuga.

É o sopro da alma a abrir janelas no peito,

mesmo quando o mundo lá fora continua a arder.”

— Mákalé


Após colherem a letra da promessa não dita,

Ṕa, os três viajantes tomaram rumo ao litoral.

O mapa não indicava um ponto, mas uma pulsação:

um eco rítmico que nascera entre gargalhadas caladas,

em ruínas onde o povo outrora se reunia não para esquecer,

mas para sobreviver a sorrir.


Era tempo de encontrar Ži, a letra do riso.


O Teatro de N’Goma Velha

Chegaram a Luanda, não à cidade de vidro e cimento,

mas à velha cintura esquecida, onde os becos ainda guardam cheiro de milho assado e sabão azul.


Ali, encoberto por heras e silêncios, repousava o antigo Teatro N’Goma Velha —derrubado pelas décadas, mas em pé no coração do povo.


As portas estavam partidas, mas o palco resistia.E ao entrar, Kaela sentiu o chão tremer, como quem contém um riso que há muito não sai.


Imani tocou nas cortinas rasgadas.


— Aqui… alguém salvou vidas com o riso.


Tariq aproximou-se do microfone enferrujado.

Colocou-se diante dele.

E o silêncio fez-se tão denso… que se ouviu o passado.


A Voz de Maneco Kimbundo

Um eco despontou da madeira:


“Se eles me tirarem o direito de falar, eu rio.

Porque o riso entra onde a censura não cabe.”


Era a voz de Maneco Kimbundo, o último contador cómico das noites proibidas de Luanda.


Durante os tempos escuros, Maneco fazia rir os que choravam escondidos.

O seu último riso, dizem, ficou preso no teto do teatro, à espera de um motivo para regressar.


O Escorregão de Kaela

Foi sem intenção.


Kaela tropeçou num pedaço de madeira solta e caiu de forma tão desajeitada queTariq soltou um riso abafado.Depois, Imani.E, por fim, ela própria.


Riram os três — não do tombo,mas da verdade.


Porque, pela primeira vez, sentiam-se leves.


O Surgimento de Ži

No teto do teatro, uma luz espiralou.


Desceu em ziguezague.

Rodopiou entre os três.

E transformou-se numa letra saltitante, colorida, que vibrava como tambor miúdo:


Ži.

A letra do riso que cura.

Que escapa quando menos se espera.

Que abre fendas na dor… para o amor entrar.


Ela não se deixou agarrar.


Tariq tentou.Imani também.


Mas foi Kaela, ao deixar-se rir de verdade — com os olhos, com o ventre, com as memórias —

que permitiu a Ži entrar no seu sopro.


A Celebração

Saíram do teatro de mãos dadas.


O povo à volta estranhou.

E então, sem saber porquê, começaram a rir.


Não de gozo.

Mas de alívio.


De reconhecimento.

De reencontro.


E a Rosa do Keve — que até então girava em intervalos —

começou a dançar.


No palco esquecido do Teatro N’Goma Velha, Kaela, Tariq e Imani despertam Ži — a letra do riso que cura. Entre gargalhadas verdadeiras e memórias partilhadas, o povo reencontra a alegria como linguagem sagrada.
No palco esquecido do Teatro N’Goma Velha, Kaela, Tariq e Imani despertam Ži — a letra do riso que cura. Entre gargalhadas verdadeiras e memórias partilhadas, o povo reencontra a alegria como linguagem sagrada.

Capítulo VIII – A Letra do Recomeço e o Regresso à Torre


“Cada fim é um início com outro nome.

A linguagem não morre —

muda de corpo para continuar a dizer o indizível.”

— Mákalé


O riso havia aberto a última porta.

As letras reunidas

Êh, Ša, Ŷam, Qwha, Ṕa e Ži

agora viviam dentro deles, não como posses, mas como presenças.


Era tempo de regressar.


A jornada levou-os de volta às montanhas de Cela.

A Torre da Rosa erguia-se, serena, sob um céu de outono cor de mel.

Ao longe, o som do Keve era música de regresso.


O Despertar da Rosa

Kaela foi a primeira a entrar.

Subiu os degraus, um a um, como quem pisa memórias que agora compreende.

Na Sala do Eco, a Rosa do Keve — que sempre girara solitária — floria inteira.


Não era uma flor comum.Seus pétalas eram placas solares que seguiam o sol como um girassol espiritual,gerando a energia que mantinha viva a torre e a sua memória.


Tariq e Imani chegaram pouco depois.

Juntos, colocaram as mãos sobre a base da Rosa.


Uma luz suave percorreu a sala.

E no centro da abóbada surgiu uma letra que nenhum deles tinha visto antes.


A Última Letra

Era feita de todas as outras.

Tinha a luz de Êh, o calor de Ša, a sombra de Ŷam, o tremor de Qwha,

a doçura de Ṕa e o brilho saltitante de Ži.


Chamava-se Nhoa.


A letra que só surge quando todas as outras se encontram.

A que não pertence a uma língua, mas ao gesto da linguagem em si.


Kaela entendeu:


— Esta é a palavra final…

Que não fecha, mas abre.


O Eco Espalhado

A Torre iluminou-se.Os campos à volta vibraram.

Os anciãos sentiram um arrepio.

As crianças pararam para ouvir o vento.


Algo havia mudado no mundo.


Não era o vocabulário.

Era a consciência de que a linguagem é viva, relacional, e sagrada.


O Legado Vivo


Nzolani apareceu uma última vez.


— Não viestes recolher letras.

Viestes relembrar que elas são sementes.

E agora, cabe-vos espalhá-las.

Não nos livros, mas nas vidas.


Kaela, Imani e Tariq desceram juntos da Torre.

Na mão, nada.

No coração, tudo.


E enquanto o sol nascia pela oitava vez desde o início da jornada,

a Rosa do Keve girou devagar…


e começou a florir em todas as direções.


De regresso à Torre da Cela, Kaela, Tariq e Imani testemunham a floração completa da Rosa do Keve. Alimentada pelo sol e pela jornada interior, ela revela Nhoa — a última letra, feita de todas as outras. Uma nova linguagem nasce, silenciosa, luminosa e viva.
De regresso à Torre da Cela, Kaela, Tariq e Imani testemunham a floração completa da Rosa do Keve. Alimentada pelo sol e pela jornada interior, ela revela Nhoa — a última letra, feita de todas as outras. Uma nova linguagem nasce, silenciosa, luminosa e viva.

Crónica II – As Guardiãs da Última Palavra

Capítulo I – O Chamado ao Círculo da Palavra Perdida

“Quando a última palavra é esquecida, não desaparece.

Recolhe-se no silêncio de quem ainda sabe escutar sem querer responder.”

— Mákalé


Passaram-se sete luas desde o renascimento da Rosa do Keve. A torre de Cela tornara-se farol de escuta profunda, mas o eco de Nhoa, a letra do recomeço, ainda não se espalhara por toda a terra.


Foi Kaela quem sentiu primeiro o chamamento: um sussurro que não vinha do vento nem da lembrança — vinha de uma ausência. Era como se alguém, algures, estivesse a tentar lembrar o que nunca lhe foi ensinado.


Tariq cartografava os sonhos da infância em pergaminhos invisíveis. Imani escrevia com gestos nas mãos das crianças que não conheciam a palavra "abraço". Mas todos sabiam que o trabalho apenas começara.


Na véspera do equinócio, a torre silenciou-se por completo — e uma pedra no piso mais alto abriu-se como um olho há muito fechado.


Lá dentro, um cilindro de madeira escura trazia gravado um símbolo: um círculo cortado ao centro por uma linha trémula.


Kaela reconheceu o desenho: era o antigo selo do Círculo da Palavra Perdida, uma ordem de mulheres que, em tempos remotos, guardavam não as palavras... mas o espaço onde elas deviam existir.


A Voz das Que Não Gritaram

A mensagem era clara: as Guardiãs chamavam. E não chamavam para lutar, mas para lembrar o que ainda podia ser dito sem ferir.


A jornada levaria Kaela, Imani e Tariq por aldeias esquecidas, arquivos subterrâneos e territórios interiores onde o verbo se calou por medo ou desuso.

Mas não iriam sós.


Novas vozes, jovens e antigas, começariam a emergir.

E o Círculo seria formado de novo — não para proteger a linguagem do mundo, mas para devolver o mundo à linguagem que cura.


No alto da Torre da Cela, Kaela descobre o selo ancestral do Círculo da Palavra Perdida. O chamado silencioso atravessa o tempo e convida os Guardiões a restaurar o espaço onde as palavras nascem para curar.
No alto da Torre da Cela, Kaela descobre o selo ancestral do Círculo da Palavra Perdida. O chamado silencioso atravessa o tempo e convida os Guardiões a restaurar o espaço onde as palavras nascem para curar.

Capítulo II – As Três Portadoras e o Círculo Velado


“A linguagem sagrada não se escreve com tinta, mas com presença.

E quem a guarda não a repete — encarna-a.”

— Mákalé


Ao seguirem o traçado ancestral revelado pelo selo do cilindro, Kaela, Imani e Tariq chegaram a um vale esquecido entre serras e névoas, onde os caminhos se desenhavam pelas pegadas das que vinham antes.


Ali, aguardavam três figuras veladas: Ayla, a que sabia escutar o que ainda não nasceu; Nehama, a que tecia memória com as mãos; e Solanja, a que dançava nomes antigos com os pés nus sobre a terra.


Eram as Três Portadoras, sobreviventes da linhagem silenciosa do Círculo.


A Cerimónia do Velar

As guardiãs não falaram.

Caminharam em círculo ao redor dos recém-chegados, cada passo marcando um compasso de sentido.

Nehama estendeu um pano bordado com símbolos incompletos — o mapa vivo do que ainda precisava ser lembrado.

— O círculo não é segredo — disse Ayla.

— É escudo.


Protege o que não está pronto para ser dito… mas já pulsa dentro do mundo.


Solanja pediu-lhes que se descalçassem.

Ao tocarem o solo com a pele, sentiram o chão vibrar com a memória dos passos antigos.

Ali, a terra falava.


O Testemunho sem Voz

Cada um dos três visitantes foi convidado a entregar algo que nunca tivera coragem de pronunciar.


Tariq desenhou um símbolo de perda com água sobre a pedra.

Imani ofereceu um fio de cabelo entrelaçado com silêncio.

Kaela escreveu com os olhos fechados no ar, traçando o nome da palavra que ainda não existe.


As Portadoras assentiram.


— Estais prontos.

Não para saber, mas para guardar.


O Círculo Revelado

Nehama tocou o pano.

Os símbolos brilharam por um instante.


E no centro, apareceu uma letra nova —

não criada, mas reconhecida:

Łin, a letra da escuta encarnada.


Ela não se dizia.

Sentia-se.


E as Três Portadoras guiaram os viajantes de volta ao mundo visível…

com o Círculo agora selado neles.


Não com tinta.

Mas com presença.


No vale escondido entre serras e névoas, as Três Portadoras revelam a letra Łin aos guardiões Kaela, Imani e Tariq. Num ritual sem palavras, o Círculo é selado — não com tinta, mas com presença viva.
No vale escondido entre serras e névoas, as Três Portadoras revelam a letra Łin aos guardiões Kaela, Imani e Tariq. Num ritual sem palavras, o Círculo é selado — não com tinta, mas com presença viva.

Capítulo III – O Som que Não Pede Ouvidos

“Há sons que não precisam de ser ouvidos,

porque já vivem dentro de nós,

aguardando apenas o gesto certo para florescer.”

— Mákalé


Atravessando a noite cerrada, Kaela, Imani e Tariq seguiram guiados por uma cadência que não se ouvia com os ouvidos, mas com os ossos — um som interno, como o pulsar da Terra lembrando os corações humanos de que ainda há caminho por traçar.


Chegaram a um planalto silencioso, onde nem os pássaros ousavam cantar. No centro, uma roda de pedras dispostas em espiral, marcada por passos antigos e gestos esquecidos.


No interior dessa espiral, estava sentada uma mulher — Aurea, de cabelos prateados como o luar e pele marcada pelas estações.

Ela não se levantou. Apenas abriu os olhos.

E todos sentiram o som.


A Voz sem Timbre

Aurea começou a mover as mãos, lentamente, como quem molda o ar.

Os gestos eram fluidos, ritmados, inconfundivelmente antigos.

Cada movimento desenhava uma sílaba invisível — não dita, não escrita — mas sentida.

Imani sussurrou:

— Isto… é um idioma que só pode ser dançado.

Aurea assentiu com um sorriso.

Então Kaela, sem saber porquê, começou a acompanhar com o corpo.

Não imitava. Respondia.

E em resposta, o chão vibrou.


O Nascimento de Hrâm

A vibração concentrou-se no centro da espiral.

Luz e poeira ergueram-se num redemoinho suave.

E ali, entre a pedra e o silêncio, nasceu Hrâm —

uma letra feita de movimento sonoro e eco interior.

Hrâm não se pronuncia.

É ativada.

Tariq anotou em silêncio:

“Hrâm é o som que não precisa de boca,

porque floresce entre quem escuta com o corpo inteiro.”


A Caminhada ao Amanhecer

Com Hrâm gravado no seu andar, Kaela, Imani e Tariq despediram-se de Aurea —não com palavras, mas com gestos de gratidão.


E quando se voltaram para partir, perceberam que a espiral de pedra desaparecera.

Mas o som…

o som permanecia.


No coração da espiral de pedra, Kaela, Imani, Tariq e a guardiã Aurea dançam o idioma antigo feito de silêncio e gesto. Do movimento nasce Hrâm — a letra que vibra entre corpos sintonizados e corações despertos.
No coração da espiral de pedra, Kaela, Imani, Tariq e a guardiã Aurea dançam o idioma antigo feito de silêncio e gesto. Do movimento nasce Hrâm — a letra que vibra entre corpos sintonizados e corações despertos.

Capítulo IV – A Voz Que Dança entre os Mundos


“Quando a palavra já não alcança,

é o corpo que tem de falar por ela —

em dança, em respiração, em gesto que atravessa fronteiras invisíveis.”

— Mákalé


Hrâm vibrava neles como uma canção sem pauta. A letra vivia nas articulações, nos ritmos do andar, na maneira como os três guardiões agora escutavam o mundo: com o corpo inteiro.


Seguindo o eco de Hrâm, chegaram a uma aldeia costeira onde o mar parecia respirar com uma frequência diferente — uma dança líquida entre mundos.


Ali vivia Djamila, uma mulher de andar leve e olhos que mudavam de cor conforme o vento. Era a única habitante do povoado e dizia-se que comunicava com os que já partiram através da dança.


O Encontro na Areia

Djamila recebeu-os sem palavras.

Fez-lhes sinal para acompanhá-la até à areia húmida.

Ali, traçou círculos com os pés, rodopiando lentamente.


Kaela sentiu o peito abrir-se como uma casa antiga cujas janelas voltam a respirar luz.

Imani e Tariq fecharam os olhos.

O mundo tornava-se poroso.


E então ouviram, vindas do nada —

vozes.

Mas não nascidas da garganta.

Vozes que dançavam no ar.


A Travessia

Com gestos lentos e respiração ritmada, os quatro formaram um círculo.


A areia começava a subir, como se soprada de dentro da terra.

As ondas aquietaram-se.

O tempo pareceu curvar-se.


E então, do centro do círculo, surgiu uma letra suspensa —

fluida, intermitente, feita de respiração e passo.


Ōnea.

A letra que dança entre mundos.

Que une o visível ao invisível.

Que diz sem dizer… e compreende sem traduzir.


A Celebração

Djamila riu-se pela primeira vez.

E sua gargalhada soou como tambor antigo.

Os quatro dançaram até o sol se pôr.


Kaela compreendeu:

“Quando a palavra já não chega,

a dança completa o caminho.”


Ōnea entrou neles sem tocar,

como o vento entra nas folhas:

soprando sentido.


E naquela noite,

a Rosa do Keve girou…

em ritmo novo.


À beira-mar, Kaela, Imani, Tariq e Djamila dançam em círculo sobre a areia viva. Das ondas, do vento e da respiração partilhada, surge Ōnea — a letra que liga mundos sem palavras, em movimento sagrado.
À beira-mar, Kaela, Imani, Tariq e Djamila dançam em círculo sobre a areia viva. Das ondas, do vento e da respiração partilhada, surge Ōnea — a letra que liga mundos sem palavras, em movimento sagrado.

Capítulo V – O Guardião da Voz Que Não Morre

“A voz que nunca morre é aquela que se transforma.

Quando cala, escuta.

Quando escuta, semeia.

Quando semeia…

volta a dizer.”

— Mákalé


O círculo estava quase completo. A travessia, longe de terminar, abria-se agora para o tempo onde o verbo repousa antes de nascer — o tempo do eco antigo que ainda ressoa nas montanhas.


Imani sugeriu que regressassem à Cela por um caminho esquecido — o trilho das vozes enterradas, uma vereda ladeada por pedras ancestrais e tambores de barro quebrados, outrora usados para mensagens de longa distância.


Foi Tariq quem pressentiu a presença antes de a ver. Entre a neblina do vale alto, uma figura sentada sobre uma rocha, envolta em manto de burel, mantinha-se imóvel como se esperasse há séculos.


O Guardião

Chamava-se Benhazul.

Ninguém sabia se era homem ou mulher. A voz, quando falou, era múltipla —

grave e aguda, jovem e idosa.

Não havia arrogância nela, mas uma serenidade que só os rios antigos conhecem.

— Vieram procurar a última voz — disse.

— Mas a última voz… não está no som. Está no gesto de continuar a escutar.


Kaela ajoelhou-se. Imani baixou o olhar. Tariq permaneceu em pé, mas em silêncio completo.

Benhazul então entoou algo que não era canção nem fala.

Era um respirar com intenção.

Como se dissesse com o fôlego aquilo que nenhuma língua ousa pronunciar.


A Letra Que Perdura

Ao final do cântico, o ar entre os presentes condensou-se.

Não em água.

Mas em signo.

Surgiu uma letra de sopro, feita de brisa e pulso:

Ẽmar.

A letra da persistência do verbo.

Do dizer que não morre, apenas muda de forma.

Tariq escreveu-a no chão com cinza.

Kaela guardou-a no peito com a respiração.

Imani fechou os olhos… e ela permaneceu.


O Caminho do Regresso

O Guardião ergueu-se e desapareceu entre os salgueiros.

Nenhum som. Nenhum adeus.

Apenas um leve deslocar de vento —

como quem passa e deixa sementes.

Na torre de Cela, a Rosa do Keve voltou a girar,

mas agora, pela primeira vez…

fez som.

E o som era a continuação.

No vale das vozes enterradas, Kaela, Imani e Tariq escutam Benhazul, o guardião que fala com o sopro. Da respiração intencional nasce Ẽmar — a letra da permanência, do verbo que nunca se apaga, apenas se transforma.
No vale das vozes enterradas, Kaela, Imani e Tariq escutam Benhazul, o guardião que fala com o sopro. Da respiração intencional nasce Ẽmar — a letra da permanência, do verbo que nunca se apaga, apenas se transforma.

Capítulo VI – A Palavra que se Tornou Casa

“Há palavras que não se dizem — acolhem.

Quando alguém entra nelas, sente-se visto, lembrado, amado.

São casas de silêncio habitado.”

— Mákalé


O caminho dos guardiões aproximava-se do seu momento mais delicado — não o da revelação, mas o da acolhida. Pois toda palavra viva precisa de um corpo que a abrace, uma terra onde possa habitar sem ser interrompida.


Kaela, Imani e Tariq retornaram à Cela com o coração pleno. Mas não regressavam apenas à Torre — voltavam ao ventre do verbo, onde cada letra recolhida precisava agora ser plantada.


A torre, sempre grandiosa, parecia agora mais terna. A Rosa do Keve girava lentamente, emitindo um som grave e doce, como uma respiração antiga em repouso.


O Quarto da Última Palavra

No piso mais alto, onde antes havia apenas silêncio, havia agora um quarto circular.No centro, um banco de madeira talhada. Em torno, sete nichos:um para cada letra recolhida.

Êh. Ša. Ŷam. Qwha. Ṕa. Ži. Nhoa.


E à medida que os guardiões colocavam as mãos sobre cada nicho, algo extraordinário acontecia:

as letras falavam — não por som, mas por atmosfera.


Uma envolvia-os em calor.

Outra fazia chorar sem tristeza.

Outra fazia rir sem motivo.

E outra… fazia lembrar a primeira vez que alguém os escutou em silêncio.


O Corpo como Morada

Imani ergueu-se. Caminhou até o centro do quarto.

Lá, sentou-se no banco e cerrou os olhos.

Começou a respirar lentamente.

A cada inspiração, uma letra pousava em seu peito.

A cada expiração, ela deixava que a letra se instalasse como se fosse uma casa.

— A palavra — murmurou —

só vive quando tem morada em nós.

Tariq fez o mesmo.

Kaela também.

E então, com os três alinhados pela respiração,

a torre inteira emitiu um canto.


O Nascimento de Ulam

No teto do quarto, um círculo de luz condensou-se.

E dele, desceu Ulam —a letra que não é som, nem gesto, nem sopro.

É acolhimento.

Ulam é a palavra tornada lar.

A letra que abraça sem dizer.

A presença que convida sem explicar.

Quando tocou o solo, a madeira floresceu.

E os três guardiões sorriram.

Porque, naquele instante…

sentiram-se em casa.



No interior da Torre da Cela, Kaela, Imani e Tariq sentam-se no Quarto da Última Palavra. Ao respirarem com intenção, as letras recolhidas transformam-se em morada interior. E do teto desce Ulam — a letra que acolhe como casa e silencia como abraço.
No interior da Torre da Cela, Kaela, Imani e Tariq sentam-se no Quarto da Última Palavra. Ao respirarem com intenção, as letras recolhidas transformam-se em morada interior. E do teto desce Ulam — a letra que acolhe como casa e silencia como abraço.

Capítulo VII – A Última Palavra

“A última palavra não é um som.

É o espaço que resta quando tudo foi dito com verdade.”

— Mákalé


O círculo estava completo. Mas ninguém o dizia em voz alta. Havia um respeito profundo pelo silêncio que se instalava — não como ausência, mas como plenitude.

Kaela, Imani e Tariq desceram da torre em silêncio. Cada passo era um gesto. Cada gesto, uma oração. Não havia mais nada a descobrir, apenas a viver.


Na clareira diante da torre, o chão estava preparado. Não por mãos humanas, mas por presença. A relva crescia em espiral. No centro, uma pedra lisa com um recorte em forma de coração aberto.

Ali, os três sentaram-se, sem plano. Apenas com escuta.


O Ato de Nada Dizer

Por longos minutos — talvez horas — ninguém falou. E nessa não-palavra, a vida começou a cantar. O som das folhas. O sopro do Keve. O pulsar da terra.


E então, do céu sem nuvens, uma luz suave desceu. Não rápida. Não lenta. Apenas no tempo certo.

Da luz surgiu a Última Palavra.

Não tinha forma. Nem som. Nem letra.

Era presença.

E cada um a sentiu de forma diferente:

  • Kaela viu o rosto da avó sorrindo sem dizer nada.

  • Imani viu o ventre da mãe guardando os nomes que ainda viriam.

  • Tariq viu as suas mãos a desenharem no ar… e serem compreendidas.


A Última Letra

Eles não a nomearam.

Mas souberam.

Era a letra do início sem fim.

Do silêncio que acolhe.

Do gesto que fica mesmo depois da partida.

No topo da torre, a Rosa do Keve abriu suas pétalas inteiras pela primeira vez.

E o mundo, pela primeira vez em muito tempo…

ficou em silêncio.

Não por medo.

Mas por reverência.

E nesse silêncio,

a Última Palavra

disse tudo.


Na clareira diante da Torre da Cela, Kaela, Imani e Tariq sentam-se em silêncio. A luz suave da Última Palavra desce sem som nem forma, acolhida apenas pela presença. E o mundo, por um instante, escuta com reverência o que só o silêncio sabe dizer.
Na clareira diante da Torre da Cela, Kaela, Imani e Tariq sentam-se em silêncio. A luz suave da Última Palavra desce sem som nem forma, acolhida apenas pela presença. E o mundo, por um instante, escuta com reverência o que só o silêncio sabe dizer.

​Esta obra literária encontra-se atualmente em desenvolvimento. O conteúdo apresentado representa um rascunho inicial, estando previstas futuras revisões e acréscimos. Agradecemos a sua compreensão e paciência enquanto a obra evolui para a sua forma final.


Posts Relacionados

Comentários

Share Your ThoughtsBe the first to write a comment.
bottom of page