Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

De Santa Comba a Santa Clara: A Incrível Trajetória do Chaves
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Nasci numa bela manhã de 13 de Fevereiro de 1959, no Hospital da Cela, em Santa Comba, que hoje conhecemos como Waku Kungo. Aquele dia de fevereiro parecia ser mais um dia comum, mas o destino já reservava para mim uma jornada extraordinária. Crescer em Santa Comba foi viver em um mundo que misturava o encanto da vida rural com os desafios de uma comunidade que se desenvolvia no coração de Angola.
Desde cedo, fui parte da rotina da nossa loja, onde meu pai, João de Deus Chaves, trabalhava incansavelmente para sustentar a família. Era um homem de uma dedicação admirável, e eu o acompanhava, observando e aprendendo sobre o valor do trabalho honesto e da solidariedade. Minha mãe, uma talentosa costureira, fazia roupas para os clientes da loja com a sua máquina de costura 'Oliva', e eu, quando podia, me aventurava a aprender a costurar algumas peças também. Nossa loja era um ponto de encontro da comunidade, onde as notícias e as histórias de vida eram compartilhadas entre os fregueses que vinham não apenas em busca de mercadorias, mas também de companhia e amizade.
Cresci numa comunidade em que o trabalho duro e o companheirismo moldavam as vidas de todos. Concluí meus estudos primários e secundários na Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo. Lembro-me das aulas no ginásio e das brincadeiras nos intervalos. Participei de uma peça chamada "O Processo de Jesus", onde atuei como João Batista. Esse momento no palco foi uma das memórias mais marcantes da minha infância e me ensinou sobre coragem e a importância de estar diante de uma audiência, defendendo algo em que acreditamos.
No dia 6 de Agosto de 1975, um dia que está cravado na minha memória, fomos abruptamente forçados a abandonar tudo que conhecíamos em Santa Comba — a nossa casa, o nosso conforto, os nossos sonhos — fugindo de uma guerra que não escolhemos, mas que nos marcou profundamente. Naquele dia, minha família e eu nos tornamos parte de um comboio de refugiados, um grupo de pessoas que, assim como nós, estavam deixando para trás toda uma vida. Lembro-me vividamente do comboio rumo a Huambo, das estradas cheias de poeira e incertezas, da minha mãe segurando minha mão enquanto caminhávamos, tentando nos dar coragem enquanto nossas vidas desmoronavam. A coragem que encontrávamos estava nos olhos uns dos outros, na esperança compartilhada de que aquilo tudo fosse apenas uma fase e que dias melhores estavam por vir.
Graças à Cruz Vermelha Internacional, 16 dias depois, embarcávamos em um avião com destino a Lisboa, um oásis de esperança no meio do caos da descolonização. Chegar a Lisboa foi como respirar depois de quase se afogar — um alívio tão intenso quanto a exaustão. Em Portugal, dividimos nosso tempo entre o continente e os Açores, onde meu pai conseguiu trabalho como caminhoneiro. Foi em terras portuguesas que comecei a reconstruir meu senso de normalidade. Passei um tempo em Celorico da Beira, onde ficávamos com meus avós, e mais tarde nos Açores, na ilha Terceira, um lugar onde senti a esperança de um recomeço.
Então, novamente um 6 de Agosto mudaria meu destino. Em 1976, desembarquei em Los Angeles, não mais como um refugiado, mas como um residente permanente dos Estados Unidos. O início em Los Angeles foi desafiante, mas cada dia trazia uma promessa de renovação. Não muito tempo depois, me mudei para Santa Clara, na Califórnia, onde me estabeleci. Esse novo capítulo foi escrito com a determinação de quem sabe que precisa recomeçar, mas também com a gratidão por ter uma segunda chance.
Exatamente um ano após minha chegada, em 6 de Agosto de 1977, iniciei o treinamento básico da Marinha Americana em San Diego, Califórnia. Lembro-me de como cada dia no treinamento parecia um desafio monumental, mas ali, entre a rigidez do treinamento e o companheirismo dos camaradas, forjei uma nova identidade. Servi no porta-aviões USS John F. Kennedy, onde cada missão no convés era um lembrete de quão longe eu havia chegado desde aquele dia de fuga e desespero em Angola. As madrugadas no Atlântico, o som constante dos aviões decolando, e a camaradagem dos meus companheiros se tornaram parte da minha história, marcando profundamente quem eu sou hoje.
Após a honra do serviço militar, veio o amor e a família. Conheci Judy, minha esposa, e juntos construímos um lar cheio de carinho e esperança. Foi com ela ao meu lado, e com os filhos que vieram depois, que concluí minha educação avançada na Universidade de Santa Clara. Estudar na Universidade de Santa Clara foi um momento de transformação. Era um novo início em muitos sentidos, e ali pude unir a busca pelo conhecimento ao meu desejo incessante de crescimento. Lembro-me das noites em claro estudando engenharia eletrônica, do apoio incondicional de Judy e da alegria imensa de ver cada sacrifício se transformando em uma conquista.
Concluí minha formação como engenheiro eletrônico e encontrei meu espaço no mundo da tecnologia, contribuindo com minha experiência para ajudar a construir o futuro. Trabalhei arduamente em empresas de renome como a ROLM, IBM e Micron, participando do desenvolvimento de tecnologias que, de certa forma, ajudaram a moldar o mundo moderno. Lembro-me dos desafios enfrentados em cada projeto, das equipes que liderei e dos amigos que fiz pelo caminho. Cada empresa, cada projeto, foi um degrau a mais na escada que me trouxe até aqui.
Hoje, ao olhar para trás, vejo uma jornada que foi definida por sobrevivência, auto-determinação, resiliência, sacrifício e tenacidade. Cada 6 de Agosto é um marco na minha vida, um lembrete das mudanças abruptas que, embora dolorosas, pavimentaram o caminho para um futuro brilhante. De Santa Comba a Santa Clara, minha trajetória é um testemunho de que podemos superar qualquer adversidade e que os sonhos podem ser reconstruídos, por mais destruídos que pareçam.
Aos meus amigos de infância, aos companheiros de uma vida que ficou para trás, saibam que, embora os anos e as milhas nos tenham separado, vocês estão sempre comigo. Cada lição aprendida, cada sucesso conquistado, é também um pouco de vocês. Levo comigo as memórias de Santa Comba e da nossa gente — do riso das crianças, dos jogos no recreio, dos rostos conhecidos nas ruas, das tardes quentes de Angola, do cheiro das mangueiras na época da colheita, dos sons que definiram minha infância.
Hoje, sou grato por cada momento, cada desafio, cada várzea e cada pico. A caminhada não foi solitária; ela foi cheia de mãos amigas que se estenderam quando precisei, de corações que me acolheram, de família que nunca desistiu. Aos meus filhos, agradeço por serem a razão do meu empenho. Vocês são a verdadeira materialização do que é possível com amor e perseverança. Cada passo que dou, dou também por vocês, e espero que esta história possa inspirá-los a nunca desistirem dos seus sonhos.
Com carinho e um olhar sempre voltado para as estrelas,
João Elmiro da Rocha Chaves
