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Santa Comba: Memórias de Uma Terra Perdida, Mas Nunca Esquecida

12 de out de 2024

6 min de leitura

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O Início de Agosto de 1975: O Último Adeus à Minha Terra Natal

Agosto de 1975 foi um período que marcou profundamente a história de Santa Comba, no Município da Cela, e, claro, as vidas de todos aqueles que tiveram o privilégio de chamar essa cidade de lar. Naquele mês fatídico, Santa Comba deixou de ser apenas uma pacata cidade angolana, cercada por montanhas e vastos pastos verdejantes, para se tornar o ponto de partida de uma das maiores jornadas emocionais que já vivi. A independência de Angola estava no horizonte, e a Guerra Fria, que pairava sobre o mundo como uma sombra ameaçadora, começou a nos afetar diretamente, moldando o destino de nossa terra e das nossas vidas.


Lembro-me de como nossa cidade parecia um refúgio de paz e tranquilidade, um local onde as crianças corriam livremente, onde os vizinhos se conheciam pelo nome e onde a diversidade era acolhida de braços abertos. As diferentes cores de pele e culturas nunca foram barreiras; pelo contrário, elas nos uniam, fortaleciam nossa comunidade e alimentavam nosso senso de pertencimento. Mas, à medida que a situação política se tornava mais tensa, as conversas na loja do meu pai começaram a refletir as preocupações que ecoavam pelo país: "O que será de nós?", "Será que teremos que partir?", "Como será o futuro de Santa Comba?"


Essas perguntas, embora silenciosas no início, começaram a se transformar em uma realidade inevitável. Sabíamos que algo maior estava por vir, algo que não podíamos controlar. Santa Comba, com suas montanhas imponentes e suas ruas de terra batida, seria transformada para sempre. Mas o que não sabíamos era o quanto essa transformação nos afetaria profundamente, e como Santa Comba continuaria a viver dentro de nós, nas memórias que carregamos até hoje.


O Último Dia: 6 de Agosto de 1975

O dia 6 de agosto de 1975 foi, sem dúvida, um dos dias mais difíceis da minha vida. O céu de Cela, de um azul profundo e sem nuvens, parecia em contraste com o peso que sentíamos em nossos corações. O sol brilhava como em qualquer outro dia comum, mas sabíamos que não havia nada de comum naquele momento. Era o nosso último dia em Santa Comba, e o ar estava denso com uma mistura de nostalgia e incerteza.


Lembro-me de andar pelas ruas da cidade, tentando gravar cada detalhe em minha mente: as árvores altas que se alinhavam nas estradas de terra, as casas de arquitetura simples, mas acolhedora, e, claro, as pessoas. Os rostos conhecidos que sempre me cumprimentavam com um sorriso, agora estavam marcados pela incerteza. Era como se todos soubessem que um ciclo estava se fechando, que algo estava sendo deixado para trás.


À medida que me aproximava da loja do meu pai, um sentimento de tristeza tomou conta de mim. Aquela loja tinha sido o centro de nossas vidas, um lugar de trabalho árduo, mas também de muitas alegrias. Meu pai, com seu espírito empreendedor, construiu algo que não era apenas um negócio, mas um ponto de encontro para a comunidade. E minha mãe, com sua habilidade de costureira, passava horas na sua máquina de costura, "Oliva", criando roupas que refletiam a identidade vibrante de nossa cidade.


Minha Infância em Santa Comba: Simplicidade e Comunidade

Crescer em Santa Comba foi uma experiência que moldou minha visão de mundo. A simplicidade era o que nos definia, e o trabalho árduo era uma constante em nossas vidas. Meus pais sempre me ensinaram que o sucesso não vinha sem esforço, e desde muito jovem eu comecei a ajudar na loja da família. Ali, aprendi a importância do compromisso, da honestidade e da união. A loja, com suas prateleiras cheias de mercadorias — de bicicletas a tecidos coloridos — era mais do que um negócio. Ela era o ponto nevrálgico de nossa comunidade, um lugar onde as pessoas se reuniam não apenas para comprar, mas para conversar, para compartilhar suas esperanças e preocupações.


Um dos momentos mais especiais da minha semana era o matinee de domingo. Depois de uma semana de trabalho duro, eu recebia alguns escudos para ir ao clube e assistir ao filme da tarde. Era um momento de descontração, onde eu me encontrava com meus amigos e nos perdíamos nas aventuras projetadas na tela grande. O cinema era operado pelo meu querido amigo Arnaldo Almeida, que sempre cuidava para que as projeções fossem perfeitas. O cinema era um refúgio para nós, um local onde podíamos esquecer, ainda que por algumas horas, as preocupações que começavam a se formar em nossas mentes jovens.


A Transformação de Angola: Da Esperança ao Êxodo

Com o passar dos dias, as conversas sobre política e independência se intensificaram. A tensão no ar era palpável, e o futuro de Santa Comba parecia cada vez mais incerto. Enquanto crianças, não compreendíamos completamente o que estava acontecendo, mas podíamos sentir a mudança ao nosso redor. Nossos pais falavam cada vez mais sobre a possibilidade de partir, e a palavra "êxodo" começou a aparecer nas conversas. O futuro, que antes parecia claro e promissor, agora estava envolto em uma névoa de incerteza.


A independência de Angola, embora carregada de esperança para muitos, trazia também medo e insegurança. A Guerra Fria, que antes parecia um conceito distante, agora estava presente em nossas vidas, moldando as decisões que teríamos que tomar. A loja de meu pai, que por tantos anos foi um símbolo de estabilidade e progresso, agora estava vazia, as prateleiras lentamente se esvaziando, à medida que nossos clientes também se preparavam para partir. Nossa casa, nossos amigos, tudo parecia se desmoronar diante de nós, e a escolha que se impunha era clara: partir ou arriscar perder tudo.


A Verdadeira Perda: A Separação de "Lar"

No entanto, a verdadeira perda não estava nos bens materiais que deixávamos para trás. A perda mais dolorosa era a separação de algo que ia muito além de paredes e mercadorias — a separação do que significava "lar". Santa Comba, para mim e para minha família, era mais do que um lugar físico. Era uma identidade, uma comunidade, um sentimento de pertencimento que nos unia a todos. Cada canto daquela terra fazia parte de nós, e ao partir, levávamos connosco não apenas as lembranças, mas também as lições que aprendemos ali.


A diversidade que definia Santa Comba, com suas diferentes raças, culturas e tradições, era o que nos tornava fortes. E ao nos despedirmos daquele lugar, sabíamos que estávamos deixando para trás algo que dificilmente seria encontrado em outro lugar. Mas, mesmo enquanto o avião nos levava para longe, sentíamos que uma parte de Santa Comba estaria sempre connosco, onde quer que fôssemos.


O Voo para Portugal: A Mudança Inevitável

Partimos de Angola em um dia ensolarado de agosto, embarcando num avião que nos levaria a Portugal. Para mim, aquela viagem não era apenas uma mudança física. Era o fim de uma era, o encerramento de um capítulo crucial de minha vida. Eu sabia, mesmo sendo jovem, que aquela viagem significava deixar para trás não apenas uma terra, mas também a inocência da infância, as raízes profundas que tínhamos construído e, de certa forma, uma parte de quem eu era.


Sentado no avião, olhei pela janela e me despedi silenciosamente do céu de Angola, prometendo a mim mesmo que um dia retornaria, mesmo que apenas em memória. A viagem para Portugal, embora emocionante em muitos aspetos, foi acompanhada por um sentimento profundo de perda e nostalgia. Sabíamos que estávamos entrando em um novo capítulo de nossas vidas, mas carregávamos connosco a saudade de uma terra que sempre seria parte de nós.


Santa Comba: Um Farol de Memórias Eternas

Apesar de termos deixado Santa Comba fisicamente, ela nunca realmente nos deixou. Ela vive em cada memória, em cada história contada ao redor da mesa, em cada sonho que mantemos de um dia poder retornar. As ruas de terra, o som das árvores ao vento, os rostos dos amigos que lá ficaram — tudo isso está gravado em nós. Santa Comba é mais do que uma lembrança; ela é uma parte viva de nossa identidade, um farol que nos guia, lembrando-nos de quem somos e de onde viemos.


As memórias que carregamos de Santa Comba nos moldam até hoje. Cada decisão que tomamos, cada desafio que enfrentamos, é influenciado pelas lições aprendidas naquela pequena cidade angolana. A terra pode ter sido tirada de nós, mas o espírito de Santa Comba vive em nossos corações, como uma chama eterna que nunca se apaga.


Conclusão: Uma Terra Perdida, Mas Nunca Esquecida

Este artigo é uma homenagem a Santa Comba, Cela — uma terra que, apesar de ter sido perdida para nós fisicamente, jamais será esquecida. A cidade continua viva em nossas memórias, em nossas histórias, e nos valores que levamos conosco. Para aqueles de nós que foram forçados a partir, Santa Comba permanece como um símbolo de união, simplicidade e respeito. E enquanto o tempo passa, continuaremos a contar suas histórias, mantendo viva a memória de uma terra que nos formou e nos deu tanto, mesmo quando fomos forçados a deixá-la para trás.



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