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A Ascensão da Resiliência: O Espírito Ngoyano em Mim

11 de nov de 2024

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Prólogo: O Poder da Memória

Desde sempre, a memória da minha terra natal vive em mim, como se o espírito dos ngoyanos estivesse incrustado na minha essência. O passado não é apenas uma recordação distante, mas uma raiz profunda que me alimenta, que me lembra de onde vim, e que fortalece meu espírito a cada dia.


Lembro-me das terras de Kissanga Kungo (Cela Velha), dos dias ensolarados em Waku Kungo, antiga Santa Comba, onde cresci cercado por uma gente de coração imenso, que trabalhava e sorria com a alma. Essas lembranças não são apenas pedaços de um tempo passado, mas uma força que vive e pulsa dentro de mim, um chamado constante que nunca me abandona. A cada instante, sinto a presença de cada pessoa, de cada história que fez parte da minha infância.


Mas, junto com essas memórias, algo mais sempre me acompanhou, uma sombra que se revelava nos meus sonhos de menino. Uma figura sombria, um monstro imenso e aterrorizante, aparecia nas minhas noites de sono profundo, soprando sobre mim uma nuvem mortal de pó de DDT. O cheiro e o gosto do pó eram tão reais que pareciam sair do sonho, trazendo-me a certeza de que meu fim estava próximo. E, no entanto, a cada manhã eu acordava, surpreso e grato por ainda estar vivo.


Assim começa a minha história, uma jornada onde o poder da memória e a força do espírito ngoyano se uniram para transformar o medo em resiliência.


Capítulo Um: Sombras da Infância

A infância, para muitos, é um lugar de refúgio e inocência. Mas para mim, ela também carregava uma sombra, uma ameaça que se manifestava nas noites em que o sono profundo se transformava em pesadelo. Lembro-me com clareza dos momentos em que o monstro surgia – uma criatura horrenda, feita de escuridão e perigo, pairando sobre mim como uma tempestade iminente.


Esse monstro, de aparência grotesca e olhos vazios, exalava um poder inescapável: uma nuvem densa de pó de DDT, aquele mesmo pó que conhecia tão bem, vendido em pequenas quantidades na loja do meu pai. Para muitos de nossos clientes, o DDT era uma arma contra pragas nas cubatas e nos arredores. Mas, no meu sonho, ele era uma arma mortal, um veneno capaz de roubar minha respiração, de interromper minha existência. Era um veneno que, por mais familiar que fosse, tomava uma forma aterrorizante na escuridão dos meus pesadelos.


A cada encontro, sentia o cheiro ácido e a textura sufocante daquele pó; ele entrava nos meus pulmões, contaminava o ar à minha volta, e tudo dentro de mim parecia cessar – o coração, a respiração, até mesmo o fluxo do tempo. Era como se cada partícula daquele pó tivesse o poder de apagar a vida em mim.


Ao despertar, meu coração batia em um ritmo frenético, como se lutasse para me lembrar que eu estava, de fato, vivo. E em cada manhã, eu sentia uma estranha mistura de alívio e incredulidade ao perceber que havia sobrevivido mais uma vez. Era como se o espírito ngoyano já estivesse ali, em silêncio, me lembrando de que, apesar do medo, eu tinha uma força interna que me guiaria para além das sombras.


Esses pesadelos se repetiram por muitos anos, tornando-se quase uma parte de quem eu era, um teste constante que me lembrava do perigo e da minha fragilidade. No entanto, em algum lugar no fundo da minha alma, algo se fortalecia a cada despertar, uma resiliência silenciosa que crescia com o tempo.


Capítulo Dois: A Ascensão da Resiliência

Com o passar dos anos, algo começou a mudar dentro de mim. Os pesadelos ainda vinham, persistentes como uma lembrança amarga, mas cada vez que eu acordava, sentia algo novo. Era sutil, quase impercetível, mas a cada manhã após o pesadelo, eu me sentia um pouco mais forte, um pouco mais preparado. Algo dentro de mim parecia nutrir-se daquela escuridão e, estranhamente, transformar o medo em força.


A influência do espírito ngoyano, que sempre esteve em silêncio nas minhas memórias, começou a se manifestar. Era como se, ao reviver as noites de terror, eu estivesse acumulando a força de cada pessoa que conheci em Waku Kungo, cada história de resiliência, cada gesto de coragem. Senti que, mesmo sem perceber, eu estava me tornando uma extensão desse espírito, absorvendo sua essência e transformando-a em uma espécie de escudo contra o que quer que viesse me ameaçar.


Em minha vida, foram muitos os momentos em que esse espírito se provou essencial. A cada desafio, a cada obstáculo, a lembrança dos meus antepassados, dos trabalhadores, dos amigos e das lutas silenciosas de um povo que não se dobrava facilmente, tudo isso me dava um tipo de força que ia além do físico. Era uma força que eu sabia que era herdada, uma força que se renovava a cada novo dia.


Lembro-me de momentos específicos, aqueles em que parecia impossível continuar, quando o medo ou a dúvida surgiam como sombras. Nessas horas, o espírito dos ngoyanos surgia, como uma voz que me dizia para persistir, para enfrentar o que fosse necessário. E era sempre nesses momentos de maior desafio que eu me lembrava das manhãs após o pesadelo, quando a luz do dia me provava que eu havia sobrevivido. A cada novo amanhecer, sentia que a força que crescia em mim era como uma armadura invisível.


No entanto, a transformação completa ainda estava por vir. Eu sabia, em algum nível profundo, que os pesadelos tinham uma razão, que essa sombra estava ali para me ensinar algo essencial. Até o momento, havia aprendido a resistir, a sobreviver. Mas ainda precisava aprender a conquistar, a transformar o medo em uma força definitiva.


Foi essa força latente, acumulada ao longo de anos, que preparou o caminho para o confronto final com o monstro. Aquilo que antes me aterrorizava agora começava a parecer menos ameaçador, como se o espírito ngoyano dentro de mim soubesse que o dia de reverter as sombras em luz estava próximo.


Capítulo Três: O Confronto Final

Na noite em que completei 32 anos, o pesadelo voltou – mas, desta vez, algo era diferente. Senti a presença do monstro antes mesmo de vê-lo, como uma tempestade prestes a se formar no horizonte. Ele se aproximou, enorme e sombrio, com aquele olhar vazio que tantas vezes havia me paralisado. Mas naquela noite, enquanto ele pairava sobre mim, percebi que algo dentro de mim estava pronto, algo que eu não havia sentido nas vezes anteriores.


O monstro ergueu-se, preparando-se para liberar a nuvem de DDT mortal que sempre marcava o fim do sonho. Mas, antes que ele pudesse agir, uma força incontrolável surgiu dentro de mim, uma força que parecia não ter limites. Foi então que me lembrei de todas aquelas manhãs em que despertei, todas as vezes que sobrevivi e me fortaleci, e entendi que aquela noite seria diferente. Eu estava pronto.


Com um impulso irresistível, senti meu corpo crescer, expandir-se. A cada respiração, eu me tornava maior, mais forte, como se o espírito ngoyano estivesse fluindo por minhas veias, ampliando cada fibra do meu ser. Era uma sensação avassaladora – eu estava absorvendo toda a dor, todo o medo, todo o DDT que o monstro havia me lançado ao longo dos anos. E agora, esse mesmo veneno se transformava em poder.


Sem hesitar, encarei o monstro, olhando em seus olhos vazios com uma firmeza que jamais pensei possuir. Levantei a mão e, com uma força que parecia vir do próprio solo de Angola, comecei a lançar de volta sobre ele o mesmo pó que ele tantas vezes usara contra mim. Pulverizei-o com DDT, uma onda interminável, como uma fúria que havia sido contida durante anos e finalmente se libertava. O monstro se contorceu, resistiu, mas a cada segundo que passava, eu ficava mais forte e ele, mais fraco.


E então, num último grito silencioso, o monstro começou a desaparecer, reduzido a uma poeira fina que se dissipou no ar. Aquele era o fim. O fim de uma longa batalha que eu não sabia que estava destinado a vencer. Com o monstro derrotado, acordei, mas, desta vez, o sentimento era de liberdade. Eu havia superado o pesadelo, libertado das sombras, finalmente dono do meu destino.


Naquela manhã, senti o ar mais leve, a luz mais brilhante. E soube que nunca mais teria aquele pesadelo. Eu havia transformado o medo em uma força inabalável, uma força que me acompanharia pelo resto da vida.


Epílogo: Um Legado de Força

O fim daquele pesadelo não foi apenas a derrota de um monstro. Foi um renascimento, uma libertação. A partir daquela noite, senti que algo havia mudado profundamente dentro de mim. O medo, que antes era uma sombra constante, agora tinha se transformado em uma lembrança distante, um testemunho da força que eu havia conquistado.


Percebi que essa força, essa resiliência, não era apenas minha; ela vinha de gerações, da terra onde nasci e do espírito dos ngoyanos que sempre esteve ao meu lado. Aquele povo, com sua coragem silenciosa e determinação inabalável, me ensinou que a verdadeira força não é a ausência de medo, mas a capacidade de enfrentá-lo, de transmutá-lo em algo maior, algo que nos eleva. E essa força vive em mim, nos meus passos, nas minhas escolhas, em tudo o que faço.


Hoje, quando olho para trás, vejo não apenas os desafios que superei, mas também o legado que carrego – um legado de coragem, de resistência, de profunda conexão com as raízes que me formaram. É um legado que não pertence apenas a mim, mas a todos aqueles que, como eu, nasceram em Kissanga Kungo, cresceram em Waku Kungo, e carregam no peito o espírito de Angola.


Aquele pesadelo me ensinou algo valioso: que mesmo as experiências mais sombrias podem se transformar em força, e que é possível renascer das sombras com uma luz ainda mais brilhante. Essa é a história que agora levo comigo, uma história de superação e de identidade, um tributo a todos que me antecederam e àqueles que virão depois de mim.


E assim, sigo em frente, guia do pelo espírito ngoyano, sabendo que, não importa onde a vida me leve, eu sempre carregarei dentro de mim a força e a sabedoria de uma terra e de um povo que me ensinaram a transformar o medo em coragem, e a escuridão em luz.


FIM



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