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Coragem e Candura: Uma Travessia Crítica pela ‘Crónica de um País Sempre Adiado’

jun 29

9 min de leitura

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Introdução Pessoal


__ Ler “25 de Abril – Crónica de um País Sempre Adiado (Autópsia de uma revolução morta à nascença)”, de Pedro Esgalhado, foi para mim muito mais do que um mero exercício intelectual. Foi, acima de tudo, um regresso íntimo e quase visceral às questões que me têm acompanhado ao longo de toda a vida — enquanto português nascido em Angola, sobrevivente das convulsões do século XX, exilado, cidadão do mundo e observador atento das promessas e desencantos da nossa terra natal.


Desde muito cedo aprendi que a História, tal como a memória, não é uma linha recta, mas um labirinto feito de silêncios, omissões e verdades por revelar. A experiência de ter vivido, de forma directa, as consequências da descolonização, da migração forçada e da reinvenção de identidade ensinou-me a desconfiar dos discursos fáceis e das narrativas arrumadas a preto e branco. Por isso, ao iniciar a leitura deste livro, sabia que estava a entrar num território sensível, povoado de memórias feridas, de esperanças adiadas e de um desejo sincero de compreender o país que fomos e o que poderíamos ter sido.


Confesso que, ao longo destas páginas, me revi em muitas das inquietações e desabafos do autor. Partilhamos uma saudade não do passado em si, mas de uma grandeza sonhada, de um sentido de missão colectiva e de uma vontade de ver Portugal ocupar, com dignidade e justiça, o seu lugar no mundo. A leitura deste livro despertou em mim emoções contraditórias: por um lado, orgulho pela capacidade do nosso povo de resistir e se reinventar; por outro, uma tristeza profunda pelas oportunidades perdidas e pelas feridas que ainda hoje nos impedem de caminhar reconciliados com o passado.


É neste espírito — de respeito pela verdade, de vontade de debater sem dogmas e de reconhecimento pela coragem de quem escreve sem medo — que partilho esta recensão. Espero que estas palavras inspirem outros leitores a mergulhar na obra de Pedro Esgalhado com o mesmo espírito crítico e aberto com que me propus a analisá-la.


Apresentação da Obra

Capa de “25 de Abril – Crónica de um País Sempre Adiado”, de Pedro Esgalhado (Fronteira do Caos Editores, 2024)
Capa de “25 de Abril – Crónica de um País Sempre Adiado”, de Pedro Esgalhado (Fronteira do Caos Editores, 2024)

“25 de Abril – Crónica de um País Sempre Adiado (Autópsia de uma revolução morta à nascença)” é uma obra publicada em 2024 pela Fronteira do Caos Editores, que surge no contexto das comemorações do cinquentenário da Revolução dos Cravos. O seu autor, Pedro Esgalhado, propõe-se revisitar e questionar meio século de História nacional, não como um mero cronista de acontecimentos, mas como alguém profundamente implicado, que recusa as narrativas fáceis e procura, acima de tudo, interrogar a substância e as consequências do nosso percurso colectivo.


A estrutura do livro reflecte essa ambição: partindo de uma síntese rigorosa da história de Portugal, desde a monarquia até ao fim do Estado Novo, Esgalhado detém-se nos momentos-chave da fundação do regime democrático, questionando mitos, expondo contradições e, sobretudo, procurando compreender porque motivo tantas das promessas de Abril parecem permanecer, ainda hoje, por cumprir.


O autor assume, logo à partida, o seu afastamento do mais recente Acordo Ortográfico, uma escolha simbólica que, mais do que uma preferência linguística, revela o apego à tradição, à identidade e a uma ideia de Portugal que valoriza a palavra escrita como acto de memória e de resistência. A obra conta ainda com um prefácio assinado por um Tenente-General, José Carlos Filipe Antunes Calçada, que reforça o carácter independente, frontal e, por vezes, incómodo da abordagem de Esgalhado.


Ao longo das suas páginas, a narrativa intercala investigação histórica, análise pessoal, testemunhos recolhidos e um sentido crítico que desafia o leitor a rever certezas e a reavaliar, sem preconceitos, o caminho trilhado pelo país nos últimos cinquenta anos. O resultado é um livro que recusa tanto o saudosismo acrítico como o triunfalismo revolucionário, procurando antes lançar luz sobre as zonas cinzentas e as perguntas ainda sem resposta da nossa história recente.


Análise Crítica: Méritos e Reflexões


Honestidade Intelectual e Riqueza Literária

Uma das maiores virtudes da obra de Pedro Esgalhado reside na sua honestidade intelectual. Longe de se limitar à repetição de lugares-comuns ou ao conforto das versões oficiais, o autor enfrenta, com coragem e lucidez, as zonas cinzentas da história portuguesa. A sua escrita é marcada por uma frontalidade rara e por um permanente exercício de dúvida, que recusa dogmas e procura, acima de tudo, a verdade — mesmo quando esta é desconfortável ou desiludida.


Ao longo das páginas, Esgalhado revela uma notável capacidade de articular factos históricos, testemunhos pessoais e reflexão crítica, sem nunca sacrificar a qualidade literária do texto. O estilo é elegante e, por vezes, emotivo, alternando entre a análise rigorosa e o desabafo íntimo, o que confere ao livro uma densidade humana e intelectual que raramente se encontra em obras do género.


O recurso a referências literárias clássicas, como as citações d’Os Lusíadas, e a preocupação com a tradição linguística portuguesa, reforçam o carácter distintivo da obra. A prosa flui com naturalidade, mesmo quando o tema exige ponderação e respeito, e mantém o leitor preso não apenas pela informação, mas também pela beleza da escrita.


Um Olhar Pessoal

A leitura deste livro permitiu-me reconhecer, em muitos momentos, a inquietação de quem viveu — ou herdou — as consequências das grandes mudanças nacionais. Tal como o autor, também eu me revejo numa geração marcada pela dúvida, pelo desejo de justiça, e pela necessidade de compreender o que nos trouxe até aqui.


Senti, durante a leitura, que Esgalhado não se limita a narrar acontecimentos, mas partilha com o leitor as suas próprias dores, frustrações e esperanças. Este posicionamento, assumidamente pessoal e por vezes confessional, torna a obra mais autêntica e aproxima o autor dos seus leitores, especialmente daqueles que também sentem o peso da História no quotidiano e nas memórias familiares.


O livro é, assim, um convite a um exercício de introspeção coletiva: mais do que procurar culpados, importa, segundo o autor, questionar as escolhas feitas, refletir sobre o futuro e, sobretudo, não abdicar do direito — e do dever — de debater de forma honesta o nosso passado.


O Valor do Debate Crítico

Num país onde tantas vezes se evita o confronto de ideias e onde a tentação de arrumar a História em compartimentos estanques é grande, obras como esta são fundamentais. Esgalhado incentiva-nos a enfrentar os nossos próprios tabus, a desconfiar das respostas prontas e a aceitar que a verdade histórica raramente se revela em preto e branco.


A recusa do autor em alinhar com consensos fáceis e o seu apelo à reflexão crítica fazem deste livro um contributo valioso para o debate nacional. Em vez de fechar feridas à força, a obra convida a expô-las à luz do diálogo e da investigação — condição indispensável para qualquer reconciliação efetiva com o passado.


Para mim, enquanto leitor e participante ativo na vida cívica, este posicionamento é não só refrescante, mas absolutamente necessário. Num tempo de polarização e memória seletiva, precisamos de vozes que arrisquem o desconforto, que suscitem perguntas e que alimentem o espírito crítico das novas gerações.


Destaque: A Secção da Descolonização


Entre todas as temáticas abordadas na obra de Pedro Esgalhado, a questão da descolonização assume-se como um dos pontos mais sensíveis, relevantes e, simultaneamente, polémicos. A forma como o autor disseca este capítulo da nossa história recente é marcada por uma coragem notável e por uma honestidade sem concessões.


Esgalhado recusa alinhar com a narrativa dominante de que a descolonização portuguesa foi inevitável e realizada “da única forma possível”. Pelo contrário, denuncia o processo como precipitado, caótico e, nas suas próprias palavras, “uma das páginas mais negras da nossa já longa História”. Afirma, sem rodeios, que “as independências africanas foram um ‘diktat’ e os novos países entregues a regimes de partido único, de esquerda obviamente! Quanto à autodeterminação livremente exercida ficou esquecida!” O autor sublinha a ausência de autodeterminação genuína e a entrega apressada das ex-colónias, chamando a atenção para o sofrimento profundo causado a centenas de milhares de cidadãos — portugueses, luso-descendentes e africanos — que viram a sua vida desfeita de um dia para o outro.


Particularmente pungente é a forma como Esgalhado aborda o drama dos chamados “retornados”. “Todos recordamos as imagens confrangedoras dos nossos ‘retornados’ que, ainda por cima, eram olhados de soslaio como colonialistas pelos revolucionários de então!” — escreve, revelando a indignação perante o abandono e a desumanização a que tantos foram votados, muitos deles enraizados há gerações em África. Esta memória de exclusão, perda e desenraizamento, que “ainda hoje se ouve dizer que aquela foi a descolonização possível”, está muito presente em tantas famílias portuguesas e merece, como bem sublinha o autor, “um olhar mais atento e humano por parte da historiografia nacional”.


A abordagem de Esgalhado é igualmente crítica em relação às consequências para as próprias ex-colónias. Denuncia a instauração de regimes autoritários, os conflitos civis e a ausência de liberdade e prosperidade para milhões de africanos. “O que se seguiu é uma das páginas mais negras da nossa já longa História... Se era a única possível não devia ter sido levada a efeito – porque uma mancha na História nunca se consegue apagar!”, afirma, recusando aceitar como inevitável aquilo que tantos preferem esquecer.


Esta secção do livro é, sem dúvida, das mais provocadoras e necessárias. Obriga-nos a revisitar episódios incómodos, a escutar memórias tantas vezes silenciadas e a refletir sobre a responsabilidade coletiva de um processo que, por demasiado tempo, se quis arrumar no esquecimento. Mais do que alimentar saudosismos, Esgalhado desafia-nos a pensar para além das simplificações ideológicas, a olhar de frente para as consequências humanas das opções políticas, e a exigir à história um exame de consciência que tarda em ser feito.


Para quem, como eu, viveu o impacto da descolonização não apenas como fenómeno distante, mas como parte integrante da sua própria história familiar, a leitura destas páginas é dolorosa e, ao mesmo tempo, libertadora. É preciso coragem para abrir feridas — mas só encarando-as se pode, eventualmente, começar a sarar.


Homenagem e Encorajamento


Ao partilhar esta obra comigo, Pedro Esgalhado não só me proporcionou uma viagem pelas encruzilhadas da nossa história colectiva, como também reafirmou o valor inestimável da escrita honesta, corajosa e sem concessões. Num tempo em que a memória nacional é tantas vezes manietada por consensos superficiais e discursos politicamente correctos, livros como este são autênticos faróis para quem procura compreender, debater e construir um futuro mais consciente.


Reconheço nesta “Crónica de um País Sempre Adiado” o exemplo de uma literatura que vai além da mera denúncia. É, acima de tudo, uma ponte para o diálogo: entre gerações, entre memórias distintas, entre quem ficou e quem partiu, entre o desejo de justiça e a necessidade de reconciliação. Ao ousar abordar temas incómodos e dar voz a histórias tantas vezes silenciadas, o autor cumpre uma função cívica e literária da mais alta relevância.


Fica, pois, o meu apelo sincero: que o autor veja a crítica — mesmo a mais exigente e apaixonada — não como obstáculo, mas como reconhecimento da importância do seu contributo. Que acolha cada interrogação, cada sugestão ou discordância, como sementes para futuras obras, para novos debates, para horizontes cada vez mais abertos.


Pedro, continue a escrever. Portugal precisa de vozes que arrisquem sair da sombra do conformismo, que tragam a público as zonas de penumbra e que nos desafiem, colectivamente, a não esquecer nem repetir os erros do passado. O caminho da memória é longo, mas cada passo dado com verdade ilumina não só o nosso entendimento do que fomos, mas sobretudo o que ainda podemos ser.


Considerações Finais


“25 de Abril – Crónica de um País Sempre Adiado” não é apenas um livro de memórias ou um ensaio histórico: é um apelo ao inconformismo, à reflexão crítica e ao compromisso com a verdade. Através da coragem e candura do seu autor, somos desafiados a olhar para além dos consensos fáceis, a encarar as nossas próprias inquietações e a questionar o silêncio que tantas vezes envolve o passado colectivo.


Para mim, esta leitura foi tudo menos indiferente. Saí dela com o sentimento renovado de que o diálogo franco e a análise rigorosa continuam a ser os melhores antídotos contra o esquecimento e a indiferença. A obra de Pedro Esgalhado não oferece respostas prontas, mas abre portas para debates necessários — sobre identidade, justiça, memória e futuro.


Deixo assim, a todos os leitores deste blogue, um convite: leiam, questionem, debatam. Não deixem morrer a coragem de Pedro Esgalhado — nem a vossa. Só construindo juntos uma memória crítica e inclusiva poderemos, finalmente, reconciliar-nos com o país que fomos e ousar ser, de verdade, um país por cumprir.


Nota Biográfica

Eu, João Elmiro da Rocha Chaves, nasci em Angola, filho de portugueses, e vivi de perto as convulsões da descolonização, do exílio e da reinvenção de identidade. Licenciado em Engenharia, sou apaixonado pela História, pela literatura e pelo diálogo entre gerações e culturas. Nas minhas escrituras, procuro sempre cruzar análise crítica com memória pessoal, na busca constante de uma verdade partilhada. Mantenho este blogue como um espaço aberto de reflexão, encontro e partilha de experiências com todos aqueles que, no mundo lusófono e além dele, se interessam por memória, identidade e futuro.


Convite ao Comentário

Convido todos os leitores, quer tenham vivido estes acontecimentos de perto, quer os conheçam apenas pelas páginas da História, a partilharem aqui as suas opiniões, memórias, dúvidas ou inquietações despertadas pela obra de Pedro Esgalhado e pelas reflexões desta recensão. O vosso contributo — seja ele testemunho, crítica construtiva ou simples partilha de experiências — é fundamental para que este espaço permaneça plural, vivo e sempre renovado.


Sintam-se inteiramente à vontade para comentar abaixo, iniciar um diálogo ou contactar-me diretamente. É na troca sincera de ideias, na escuta mútua e no confronto de perspetivas que a memória se renova, a cidadania se fortalece e a esperança de um país mais lúcido e inclusivo se mantém viva.


Obrigado por fazerem parte deste caminho.

Com estima e admiração,

João Elmiro da Rocha Chaves












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Comentários (1)

Pedro Esgalhado
30 de jun.

Agradeço as palavras elogiosas contidas nesta recensão crítica. Escrever este livro foi uma missão que assumi face às muitas inverdades que nos têm imposto numa narrativa de sentido obrigatório que continua a ser alimentada. Este livro nasceu para ser dado à estampa no cinquentenário do 25 de Abril, o que aconteceu. Da minha releitura do resultado final resultou uma evolução do conceito inicial, evolução essa que impõe a sua evolução do conceito: dos 3 "D" da programa do MFA (Democratizar - Descolonizar - Desenvolver), o "25 de Abril - Crónica de um país sempre adiado" apenas cobre o primeiro. Está em fase de redacção o segundo, que será intitulado "Dossier Descolonização" e que irá mais longe na análise do fenómeno África e a expulsão dos europeus. O terceiro, apesar de já estar a reunir material para o conteúdo, irá esperar pelo segundo.

A quem se atrever ao primeiro, deixo os meus votos de boas leituras e o testemunho da minha gratidão - que ele suscite reflexão e discussão! Um abraço ao dono deste blogue e a todos os seus seguidores

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