top of page

6 de Agosto de 1975 — Cinquenta Anos Depois


Não se abandona uma casa, uma terra ou uma vida sem deixar atrás uma parte da alma. E quando isso acontece, a memória torna-se pátria, e o coração, exílio.


Por João Elmiro da Rocha Chaves, Mákalé


I. Cinquenta Anos a Carregar Silêncio


No dia 6 de Agosto de 1975, ao raiar da manhã, ao som de metralhadoras, morteiradas e gritos de aflições, a minha família foi obrigada a abandonar a terra onde nasci, a cidade de Santa Comba, hoje conhecida por Waku Kungo, na Província do Cuanza Sul, Angola. Não partimos por vontade própria, mas sim pela força invisível de uma história que se impunha com brutalidade: a transição de Angola de província ultramarina portuguesa para uma nação independente, mergulhada, contudo, num vácuo de poder, medo, e incerteza.


Tínhamos esperança, mas a esperança não sobrevive ao cheiro do sangue, às vozes das ameaças, aos muros pichados com frases de ódio, nem ao silêncio cúmplice de quem nos conhecia desde sempre e já não nos olhava nos olhos.


Naquele dia, deixámos para trás tudo o que não cabia numa mala:

  •  A casa construída com o suor dos meus pais e dos meus avós;

  •  Os trilhos da minha infância entre as lavras, os campos de batata, e o cheiro doce da terra molhada pela chuva do rio Keve;

  •  Os amigos de todas as cores, as escolas onde aprendíamos lado a lado, os vizinhos com quem partilhávamos pão, conselhos e orações.


Nada disso se podia levar. E por isso, tudo isso ficou.


II. O Contexto Histórico que Nos Desalojou


A assinatura dos Acordos de Alvor, em Janeiro de 1975, entre Portugal e os três principais movimentos armados (MPLA, FNLA e UNITA) visava preparar Angola para a independência. No papel, era um processo de descolonização negociada. Na prática, foi o início de um colapso institucional.


A administração portuguesa estava em retirada, o Exército Nacional em desmobilização, e o território transformava-se rapidamente num campo de batalha ideológica entre as potências da Guerra Fria:

  •  O MPLA recebia apoio militar e logístico da União Soviética e de Cuba.

  •  A FNLA era armada e apoiada pelos Estados Unidos e pelo Zaire.

  •  A UNITA, mais tarde, tornar-se-ia aliada da África do Sul e também dos EUA.


Neste vórtice de alianças externas e rivalidades internas, o cidadão comum; negro, branco ou mestiço, foi apanhado no fogo cruzado.


A minoria portuguesa, incluindo famílias que ali viviam há várias gerações, passou a ser vista como símbolo do “colonialismo”, mesmo quando, na prática, essas famílias partilhavam a mesma precariedade de vida e os mesmos sonhos de prosperidade que os seus vizinhos angolanos. O conceito de “inimigo” tornou-se abstrato, e perigosamente arbitrário.


III. A Última Noite e o Adeus


Na véspera da partida, o silêncio era denso. Os camiões já não chegavam com alimentos. A loja da minha família, outrora movimentada por clientes de todas as zonas, fechara as portas. A rádio transmitia marchas militares e slogans revolucionários. Os sons dos tiros, cada vez mais próximos, tornavam a decisão inevitável.


Fomos escoltados até Nova Lisboa (atual Huambo) para aguardar evacuação. O que devia ser um destino temporário transformou-se num ponto de não retorno. Daí, rumámos a Luanda e, por fim, a Lisboa — cidade que nos acolheu como “retornados”, palavra fria que apagava décadas de pertença e contribuía para o sentimento de desenraizamento.


IV. Meio Século de Silêncio, Mas Não de Esquecimento


Hoje, ao olhar para trás, não escrevo este testemunho com raiva, mas com responsabilidade histórica.


Escrevo para que as gerações mais novas saibam que a dor do exílio não é monopólio de uma só raça, ideologia ou classe social.


Escrevo porque a nossa história; a dos luso-angolanos, assimilados, e tantos outros que acreditavam na convivência, foi silenciada por narrativas simplistas, que só servem interesses de poder.


Angola perdeu muito com esta expulsão em massa. E nós, que partimos, perdemos também, embora tenhamos reconstruído as nossas vidas com dignidade noutras terras.


V. Conclusão: Memória como Resistência


Se há algo que este meio século ensinou, é que a memória é uma forma de resistência. Por isso, hoje não lamento apenas o que foi perdido, celebro o que resistiu:

  •  A nossa cultura mestiça,

  •  A nossa ética de trabalho,

  •  A nossa capacidade de amar duas pátrias, mesmo quando uma nos rejeitou e a outra nos viu como estrangeiros.


Neste dia 6 de Agosto de 2025, ergo a minha voz, não como vítima, mas como testemunha viva da História. Que este artigo sirva para recordar sem ódio, refletir sem revisionismo, e honrar aqueles que partiram com o coração em lágrimas mas o espírito em pé.


 Soneto


Partimos sem saber se era partida,

Ou se era a alma a ser desalojada,

Na mala, a roupa. No peito, a dor calada,

Na pele, a sombra de outra despedida.


Na terra onde cantámos a nossa vida,

Ergue-se agora a voz uniformizada,

E a infância, outrora abençoada,

Chora na mata funda e esquecida.


Mas nada apaga o sulco da memória,

Nem silencia os nomes que perduram,

Mesmo onde a história mente ou contradiz.


Pois somos ramos vivos dessa história,

E em nós as duas pátrias continuam,

Presas ao peito, como o amor e o país.


#angola #africa #portugal #diaspora

#memória #história #retornados 

#mundolusófono #CulturaLusófona



Posts Relacionados

Comentários

Compartilhe sua opiniãoSeja o primeiro a escrever um comentário.
bottom of page