Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

O Mito da Riqueza Gratuita: direitos, deveres e a dignidade do trabalho
5
4
0
O Estado deve-me tudo? Direitos, deveres e riqueza comum
Autor:
Secúlo da Cela , João Elmiro da Rocha Chaves
“Secúlo” é um angolanismo para “mais-velho”, “ancião”.
«Não pergunte o que o seu país pode fazer por si; pergunte antes o que você pode fazer pelo seu país.» John F. Kennedy, discurso de tomada de posse, 20 de janeiro de 1961
Introdução
Oiço muito, e repete-se muito a ideia de que o Estado deveria garantir a todos uma vida completa sem esforço: casa moderna, alimentação, roupa, energia e água sem custos, e um rendimento assegurado. Quando isso não acontece, alguns concluem que nada mudou desde a colónia, onde muitos foram forçados a trabalhar. A tentação de reduzir a sociedade a estas duas imagens é compreensível, mas é enganadora. A pergunta certa não é se o Estado “deve tudo”, nem se “cada um que se arranje”. A pergunta certa é outra: que contrato social sustenta uma comunidade digna, justa e viável ao longo do tempo.
Quem “possui” a riqueza do subsolo
Na maioria dos países os recursos do subsolo pertencem ao Estado. O cidadão comum não é proprietário do petróleo, do ouro ou do cobre sob os seus pés. Pode, sim, beneficiar indiretamente: através de serviços públicos, infraestruturas, ou, nalguns modelos, dividendos e fundos soberanos. Confundir “riqueza nacional” com “propriedade individual” leva a uma expectativa impossível de satisfazer e mina a confiança quando o inevitável desfasamento entre sonho e realidade aparece.
Direitos sociais não são cheques em branco
Constituições modernas consagram direitos à saúde, educação, segurança social, habitação condigna. Estes direitos existem por razões morais e históricas claras. Mas têm duas notas de rodapé que raramente cabem no cartaz:
Progressividade: realizam-se na medida dos recursos e da capacidade administrativa.
Corresponsabilidade: o exercício de direitos convive com deveres de contribuição, dentro das possibilidades de cada um.
Dizer isto não é “culpar os pobres”. É reconhecer que hospitais, escolas e redes elétricas não crescem do nada. Precisam de investimento, impostos, gestão competente e, sobretudo, trabalho humano.
Trabalho não é castigo
O trabalho não é a continuação da coerção colonial por outros meios. É o mecanismo através do qual pessoas e comunidades transformam talento em valor, e valor em liberdade. O que aproxima a injustiça colonial de certas realidades atuais não é o facto de existir trabalho. É quando o trabalho é mal pago, inseguro, sem mobilidade e sem voz. A solução não é abolir o trabalho. É dignificá-lo: proteger direitos laborais, promover qualificação, abrir portas à iniciativa e ao mérito.
Estado social vs. assistencialismo
Há uma diferença entre Estado social e assistencialismo. O primeiro investe em capacidades que libertam: saúde preventiva, ensino exigente, formação técnica, creches que permitem trabalhar, transporte público que encurta distâncias, justiça célere que protege o honesto. O segundo distribui apoios sem plano, cria dependências e não mede resultados. Um gera autonomia. O outro alimenta expectativas e frustrações.
A metáfora da mina inesgotável
Tratar o Estado como uma mina que jorra benefícios sem limites é receita para o colapso. Mesmo países ricos em recursos naturais aprenderam que sem regras claras, transparência e disciplina orçamental a “maldição dos recursos” transforma riqueza em volatilidade. A boa gestão pública não promete tudo a todos. Prioriza, mede, corrige e presta contas.
O que é justo esperar do Estado
É justo esperar que:
garanta um piso de dignidade, para que ninguém caia abaixo do mínimo humano em momentos de fragilidade;
abra caminhos para o esforço render, reduzindo barreiras de entrada e premiando quem se qualifica e trabalha;
transforme rendas de recursos naturais em bens públicos duradouros: educação de qualidade, redes de água e energia fiáveis, justiça funcional, segurança, ciência e tecnologia.
Não é realista esperar que:
substitua indefinidamente o rendimento do trabalho para quem pode trabalhar;
ofereça “tudo, já e gratuito” sem escolhas difíceis, sem impostos, sem eficiência e sem responsabilidade partilhada.
E o que é justo esperar de cada cidadão
Contribuir na medida das suas capacidades, pagando impostos de forma honesta e trabalhando com profissionalismo.
Aprimorar-se continuamente. Num mundo em mudança, a melhor proteção social é a atualização de competências.
Cuidar do comum. Respeitar o espaço público, exigir transparência, votar informado, participar.
O erro das comparações fáceis
Comparar a obrigação de procurar trabalho com a coerção colonial é um atalho retórico que apaga diferenças essenciais. O colonialismo negava direitos políticos, restringia mobilidade social e explorava trabalho sob regimes de força. Uma democracia que oferece educação, concursos públicos, tribunais independentes e liberdade de iniciativa não é perfeita, mas opera noutra lógica: direitos com deveres, oportunidades com critérios, apoios com avaliação.
Cinco princípios para sair da armadilha do “o Estado deve-me tudo”
Dignidade como piso, mérito como escada: ninguém fica para trás, mas é o esforço que faz subir.
Investimento social, não subsídio perpétuo: priorizar saúde, educação, ciência, infraestruturas e ambiente.
Trabalho digno: contrato claro, salário justo, proteção no desemprego, portas abertas à progressão.
Valor local dos recursos: partilhar receitas de minerais e petróleo com as comunidades em serviços e oportunidades, com contas públicas abertas e fiscalizadas.
Cultura de corresponsabilidade: Estado, empresas e cidadãos com deveres claros e consequências quando falham.
Conclusão
Sociedades prósperas não nascem de promessas fáceis, nascem de pactos adultos. O Estado deve garantir dignidade, oportunidades reais e justiça. O cidadão deve contribuir, crescer e respeitar o bem comum. Recursos naturais ajudam, mas não substituem trabalho, competência e integridade. Quando direitos e deveres se encontram, a pobreza recua, a inveja perde voz e a esperança volta a ser obra de todos.
