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Raízes Silenciadas: O Patriotismo Africano-Português

João Elmiro da Rocha Chaves, Miro

Volume I – 2025


Índice


Prefácio.

Capítulo 1: A Casa do Colono.

Capítulo 2: A Farda que Mudou de Cor.

Capítulo 3: Entre a Sanzala e o Palácio.

Capítulo 4: O Dia em que o Povo Ateou Fogo às Mentiras.

Capítulo 5: A Esperança Reaprendida.

Capítulo 6: O Silêncio dos Herdeiros.

Capítulo 7: A Farda Desbotada.

Capítulo 8: O Regresso do Filho Perdido.

Capítulo 9: A Última Estátua.

Capítulo 10: O Futuro em Construção.

Epílogo: Quando a Terra Voltou a Falar.


Prefácio

 

Este livro não nasceu de uma vontade de ser lido. Nasceu de uma urgência de ser dito. Escrever é, acima de tudo, testemunhar por aqueles que nunca encontraram uma página, ou cujas vozes se perderam no vento da história.


Há verdades que não cabem em relatórios, nem em manuais oficiais. Existem memórias que apenas um coração vivo consegue carregar. O que aqui partilho não é amargura, nem saudade que pesa no peito. É uma clareza conquistada no exílio, no silêncio, nos anos em que aprendi que a distância não seca a raiz. Pelo contrário, ensina-a a procurar água mais fundo na terra.


Fui criança entre matas já feridas. Fui jovem rodeado de discursos que já não reconheciam o rosto do povo. Vi colunas de soldados, filas de contratados, lágrimas caladas ao lado de promessas em voz alta. Aprendi cedo que o mundo se faz de partidas, e que, por vezes, uma mala leva mais saudade do que roupa.


Quando deixei Angola, nada levei nos bolsos. Mas trouxe tudo no peito. A terra colou-se à pele e nunca me largou, mesmo quando os dias se tornaram americanos e o futuro teve de ser reinventado noutra língua. Em cada silêncio demorado, a terra falava-me em sussurros. Em cada fotografia desbotada, a pátria voltava como um sopro no pescoço. Em cada injustiça presenciada hoje, o passado estremecia, lembrando-me que a história nunca parte de verdade; apenas adormece, à espera que a saibamos escutar.


Este livro é o que ficou por dizer quando o medo impunha silêncio. É também um pedido de perdão às gerações que nasceram sem perceber porque sangra a pátria. Escrevo para os que partiram sem chão e para os que ficaram sem voz. Escrevo com gratidão pelos que resistem a plantar mandioca, a ensinar sem salário, a acolher sem pátria, pois cada gesto de bondade é um fio que nos ata de volta à origem.


Cada capítulo não é apenas crítica. É tentativa de reconciliação; com o que fomos, com o que nos impuseram, e com o que ainda podemos ser, se escolhermos a memória em vez da amnésia, a coragem em vez do conforto. As raízes foram silenciadas, sim. Mas não morreram. Estão vivas, respiram sob o betão da propaganda e o bronze das estátuas. Só esperam ser ouvidas, romper e voltar a ser floresta.


É por isso que escrevo. Para que a história volte a ser povo, não como fardo, mas como pertença. Para que o povo, ao recuperar a sua própria narrativa, se reconheça finalmente; não como sombra no livro alheio, mas como batida e voz da terra.

Se estas páginas servirem para alguma coisa, que seja isto: recordar a quem lê que até o silêncio tem memória, e que até as feridas podem trazer a semente de um novo começo.


João Elmiro da Rocha Chaves


Capítulo 1: A Casa do Colono

 

A casa do colono pode ser pintada e vendida mil vezes, mas continua sempre a casa do colono.


A casa do colono não era apenas uma construção. Era um símbolo, uma fronteira, um palco onde a história de Angola se desenrolava em silêncio e em vozes baixas. Por fora, exibia o seu telhado de telha de barro à portuguesa, laranja e curva, coroando paredes caiadas, varandas generosas, beirais onde as andorinhas faziam ninho na estação certa. A telha de barro não era só proteção contra o sol ou a chuva. Era marca de distinção, separando o universo dos que tinham e dos que apenas viam de longe. Nos musseques, nos bairros improvisados, eram os telhados de zinco ondulado, brilhando ao sol e roncando à chuva, que cobriam as casas de quem nunca teve casa grande.


No interior da casa, o cheiro da cera misturava-se ao da madeira antiga, ao perfume importado nas malas de quem ali morava, e ao suor discreto dos que serviam, muitas vezes sem nome reconhecido. Recordo as manhãs do Waku Kungo, onde a varanda era ponto de encontro e despedida, cruzamento de vidas, negócios e rumores. Nas paredes, um calendário vindo de Lisboa, um quadro de Nossa Senhora de Fátima, e entre eles o silêncio espesso do que se calava por respeito, por medo, ou por hábito.


Era palco de encontros e desencontros. Os móveis vinham nos navios, mas os sons pertenciam à terra: batuques distantes da mata, galinhas no quintal, murmúrios em kimbundu atravessando muros de português castiço. O rádio, sempre ligado, trazia notícias da metrópole, enquanto o chão de terra batida guardava as memórias dos que ali tinham passado, trabalhado, sofrido e desaparecido sem história escrita.


A casa impunha-se com as suas janelas altas, grades de ferro trabalhado e portão pesado. Era feita para proteger alguns, nunca para acolher todos. O povo olhava de fora, alguns com inveja, outros com temor, muitos apenas com a resignação de quem nasceu do lado errado do portão. Dentro, a vida desenrolava-se entre rotinas discretas: refeições servidas, contas fechadas, crianças educadas para serem donas de si e daquele espaço. Mesmo os cães sabiam quem era da casa e quem era apenas visita tolerada.


Quando a independência chegou, não foi a casa que mudou. Foram as bandeiras, os retratos nas paredes, os nomes nas cartas e na matrícula. A planta, o desenho de fundo, manteve-se. A administração colonial foi herdada intacta: ficaram os ficheiros da polícia, os registos de propriedade, os cargos, os métodos de vigilância. O partido único instalou-se como novo inquilino, rapidamente promovido a senhor do espaço e dos destinos.


A festa da libertação tornou-se festa de posse, nunca de pertença. A casa do colono transformou-se em sede, comité, gabinete do Estado-partido. Pintaram-na com as cores da revolução, hastearam bandeiras novas, penduraram retratos de outros heróis. Mas as chaves continuaram nas mãos de poucos.


A lógica manteve-se: poder de cima para baixo, portas fechadas, promessas para o povo, privilégios para os seus. As ruas mudaram de nome, os discursos mudaram de tom, mas os camponeses não herdaram os campos. Os contratados continuaram a ser mão-de-obra barata. As periferias urbanas mantiveram-se esquecidas.


A educação passou de instrumento de assimilação a veículo de doutrinação. A juventude aprendeu novos hinos, mas continuou a cantar o velho refrão da desigualdade. O Estado apropriou-se da casa como património do partido. A linha entre administração pública e máquina partidária esbateu-se até desaparecer.

Nomeações passaram a depender de fidelidade, não de mérito. Cresceu uma nova nobreza: a aristocracia revolucionária, herdeira do domínio colonial, reciclada sob o pretexto libertador.


O que era do colono passou a ser do camarada. A casa grande continuou a ser de poucos. O povo assistia à mudança de dono, mas não de serventia. Entrámos na casa grande, mas continuámos a dormir no quintal.


As leis de nacionalização, como a Lei n.º 43/75 e a Lei n.º 6/76, prometeram justiça social, mas consolidaram apenas a apropriação estatal, sem verdadeira redistribuição. Os discursos de Agostinho Neto em 1975 afirmaram a legitimidade exclusiva do partido; os campos de reeducação, a repressão aos dissidentes, o medo instalado, mostraram que a repressão mudara apenas de uniforme.


O meu avô dizia, com uma gravidade serena: Esta casa é nossa, mas não nos pertence. Amanhã pode ser de outro. O que importa não é a casa, é o que fazemos dela.

Mais tarde percebi que falava do país inteiro. A verdadeira independência não acontece quando o colonizador parte, mas quando todos refazem os alicerces e reinventam a pertença coletiva.


Hoje, muitos perguntam:

Quem tem direito a habitar esta casa?

Quem limpa o chão e quem sobe à varanda?

Para quem se abrem as janelas?

Quem decide o que fica nos retratos e o que se apaga da memória?

Se um dia a casa ruir, quem vai reconstruir: os herdeiros ou os vizinhos?


Enquanto a planta da casa não for redesenhada por todos, a história repete-se. A casa do colono é o país inteiro: continuam a existir quartos reservados para uns, corredores frios para outros. Enquanto não partilharmos as chaves, a casa antiga será sempre memória de exclusão, mesmo debaixo de nova tinta, mesmo nas mãos de novos donos.


O colono saiu, mas a lógica ficou. O partido apropriou-se do Estado como herança, não como mandato. As chaves mudaram de mãos, mas não chegaram a quem lavrou, lutou e sofreu. Nas sombras dessa casa, vive ainda o eco de uma descolonização inacabada.


Um país só é livre quando todos têm lugar à mesa, quando a casa não se fecha ao diferente, quando as chaves são de uso comum e as paredes ecoam vozes diversas.

Até lá, a casa do colono será sempre memória de domínio, mesmo com nova tinta, mesmo nas mãos de novos donos.


Soneto: A Casa do Colono


Pintaram-na de heróis e de esperança,

Com hinos novos, cores de vitória,

Mas nas paredes vive a velha estória,

Que o tempo cala, e o silêncio balança.


O dono muda, a casa não avança,

Trocaram-se os rostos, ficou a glória,

D’um poder que renasce, e a sua escória

Disfarça-se em discursos de bonança.


E o povo, esse, assiste à repetição,

De quem chegou dizendo ser irmão,

Mas toma a chave e fecha a mesma porta.


Oh pátria adiada! Sol que não desperta!

Enquanto a casa antiga for aberta,

A liberdade ficará do lado de fora.


Capítulo 2: A Farda que Mudou de Cor

 

A farda mudou, mas o medo não saiu da pele. A esperança encheu as ruas, mas o silêncio continuou nas casas.


Quando fecho os olhos, ainda vejo os uniformes do antigo regime. Aqueles homens de passo firme e olhar severo, símbolo de autoridade, mas também de distância. Quando saí de Angola, a independência ainda era promessa, e eu, como tantos outros, nunca cheguei a assistir ao momento em que a farda mudaria de cor.

Tudo o que sei desse tempo chegou-me por cartas e notícias, por telefonemas carregados de emoção e hesitação, por relatos entrecortados nos cafés de Portugal, nas longas conversas com amigos que ficaram ou tentaram ficar.


Ouvi contar que as ruas celebraram a chegada dos novos donos do poder. As fardas deixaram de ser portuguesas, passaram a ser nacionais, revolucionárias, adornadas com novos símbolos, novas cores. Mas a postura de autoridade, dizem, mudou pouco. A métrica do medo, essa, continuou a escrever-se nos passos pesados dos homens armados.

Alguns amigos descreviam os primeiros desfiles do novo regime, o brilho dos botões, a solenidade dos discursos, a promessa de uma nova ordem. Outros partilhavam silêncios, porque aprenderam cedo que perguntar podia ser perigoso, que o novo Estado era também vigilante, que a suspeita e o silêncio sobreviviam à mudança da bandeira.


Foi pelo que ouvi, nunca pelo que vi, que compreendi como a repressão podia vestir qualquer uniforme. As notícias da BBC, os relatos truncados que chegavam à América, falavam de prisões políticas, de listas negras, de centros de reeducação onde antes eram só cadeias. A esperança de liberdade, que tanto nos fez sonhar antes de partir, rapidamente se confundiu com o receio de uma nova vigilância.


Soube, pela dor dos outros, do terror de 27 de Maio de 1977. Milhares de vozes silenciadas, famílias destroçadas, desaparecidos sem sepultura. As cartas que chegavam traziam palavras medidas, frases interrompidas, medos disfarçados de saudade.


Era estranho perceber que, depois de tanto sacrifício, a liberdade tinha sido adiada para muitos. O medo, diziam-me, mudara de sotaque, mas não de presença. A escola ensinava lealdade ao partido, o jornal só contava uma verdade. A farda nova não protegeu quem esperava justiça. Antes, passou a ser sinal de privilégio para uns e de ameaça para outros.


Na minha família, falava-se pouco. As notícias eram partilhadas baixinho, como se ainda nos espreitassem do outro lado do oceano. As conversas sobre Angola eram feitas de perguntas:

Como está a família que ficou?

O que aconteceu à loja, à casa, ao amigo que deixou de escrever?


Senti, à distância, que a liberdade verdadeira é mais do que a troca de bandeiras. É a ausência do medo, o direito ao riso solto, a possibilidade de discordar sem castigo. Pelos relatos, vi como o silêncio se tornou a língua oficial de quem queria sobreviver.

A repressão deixou de ter nacionalidade. Agora era angolana, e por isso mesmo, mais íntima, mais amarga.


Vejo as fotografias dos desfiles, dos comícios, dos discursos, e procuro nos olhos das pessoas aquele brilho de esperança que nos fazia sonhar. Nem sempre encontro.

O medo não saiu da pele. Mudou a cor da farda, mas não mudou o peso do silêncio.


Soneto: A Farda que Mudou de Cor


Pintaram de vermelho a antiga prisão

E fizeram do medo um novo hino

Mudou o dono, não mudou o destino

Do povo à mercê da repressão


A farda nova esconde a opressão

O discurso, a farsa e o desatino

Da liberdade, só resta o menino

Que aprende a calar o coração


Muda a cor, mas não muda a dor

Do silêncio imposto à multidão

Que sonhou com justiça e encontrou temor


Oh pátria que se veste de ilusão

Quando fardas mudam sem mudar o amor

Só há mudança no nome da prisão

 

Capítulo 3: Entre a Sanzala e o Palácio

 

A estrada era longa e poeirenta, entre a sanzala e o palácio. Caminhá-la era esperança e penitência, promessa e desengano.


Quando Angola mudou de rosto, eu já estava do outro lado do mar. Deixei para trás o cheiro da terra húmida, o murmúrio do povoado, o tilintar do sino na capela, a infância a correr entre o barro vermelho e as sombras dos mangueirais. Saímos enquanto ainda se dizia “um dia seremos livres” e ainda se imaginava uma pátria de todos, sem saber que, para muitos, a liberdade viria misturada com novas fronteiras.


O que sei da Angola que nasceu depois só me chegou pela memória emprestada dos outros. Foram cartas lidas em silêncio, telefonemas apressados, notícias cruzadas de jornal americano e rádio portuguesa. Na voz dos amigos que ficaram ou que voltaram, ouvi duas realidades: a esperança dos dias de festa, das bandeiras novas, dos hinos reinventados e o cansaço das noites sem luz, dos bairros esquecidos, da promessa adiada.


Cresci numa Angola de contrastes visíveis, mas o abismo entre a sanzala e o palácio nunca deixou de crescer. A sanzala era, para mim, sinónimo de simplicidade, comunidade, partilha do pouco e do sonho. Era o lugar das mãos calejadas, das noites de conversa ao luar, do pão repartido por todos. O palácio, pelo contrário, era rumor, distância, poder. Nele entrava-se de chapéu na mão, voz baixa, olhos no chão.


Depois de partir, a distância entre esses dois mundos foi-me contada por quem viveu a transição: disseram-me que o novo poder prometeu acabar com o velho abismo, mas depressa construiu muros diferentes, com os mesmos tijolos da exclusão.


Amigos narraram que, nas festas da independência, houve alegria e lágrimas, mas cedo regressou o dia-a-dia da luta pelo pão, pelo remédio, pela escola. Os discursos continuavam a chegar de cima. A sanzala mantinha-se como reserva de votos, de promessas, de trabalho. O palácio mudava de nome, de bandeira, mas os portões continuavam fechados.


Acompanhei de longe relatos de quem esperava que o Estado fosse, finalmente, casa de todos. Mas muitos diziam que a pátria se tornou propriedade partilhada entre camaradas e amigos de confiança. A estrada entre a sanzala e o palácio permaneceu esburacada, literal e simbolicamente. A mesa do banquete raramente tinha lugar para quem vinha de fora do círculo do poder.


Hoje, ao folhear cartas guardadas, revejo a esperança nos olhos de quem acreditou, mas também a resignação de quem, décadas depois, ainda espera ver o filho sair do bairro e chegar ao palácio por mérito, não por convite.


Escrevo assim este capítulo como quem junta pedaços: memórias de infância, relatos de quem ficou, sonhos partilhados em noites de saudade. Entre a sanzala e o palácio segue a estrada, feita de distância, promessa, luta e esperança.


Soneto: Entre a Sanzala e o Palácio


A estrada que prometeram nunca veio,

ficou-se na palavra e na bandeira.

O povo viu da mata a tal carreira

que levava ao poder, não ao anseio.


Na sanzala, o luar serve de esteio,

no palácio, há luz, há mesa inteira.

Um vive da enxada, outro da carteira,

e o futuro é jogado em devaneio.


Se a pátria é de todos, onde estão

os frutos do suor, da multidão

que empunhou fuzil, enxada e esperança?


Entre o barro e o mármore erguido,

cresceu um abismo nunca vencido:

a nação adiada pela esperança.

 

Capítulo 4: O Dia em que o Povo Ateou Fogo às Mentiras

 

Há dias que são apenas dias. E há dias que acendem séculos adormecidos.


Chegou-me pela televisão e pelos relatos de amigos: “Hoje, em Luanda, queimaram o cartaz do Presidente. Desta vez não foi vandalismo cego, foi gesto simbólico, raiva partilhada, grito antigo finalmente posto à rua.” Vi imagens de multidão a atravessar avenidas poeirentas, homens e mulheres de todas as idades, cartazes improvisados, cânticos de desespero, vozes que nunca tinham ecoado tão alto. No meio do tumulto, até agentes da polícia foram apanhados a saquear, misturados ao povo, todos juntos num caos de urgência e de recusa.


A praça ardeu não pelo prazer do fogo, mas pela necessidade de purificação. O cartaz do presidente, durante tanto tempo intocável, caiu como caem os ídolos quando deixam de servir à verdade. As mentiras acumuladas ao longo dos anos transformaram-se em lenha seca, bastou uma faísca.

Por entre a multidão, alguém gritou “Hoje queimamos o medo. Hoje não somos só números, somos gente.”


As autoridades tentaram abafar o protesto com repressão, mas a onda já não podia ser contida. O povo, cansado de promessas incumpridas, de slogans sem pão, de hospitais sem médicos, de escolas sem professores, foi à rua. Ali, de olhos abertos, ninguém acreditava mais nos discursos da televisão, nem nos comunicados do partido.

Recebi relatos de quem vive em Luanda:

“Miro, o povo já não se cala. Até a polícia roubou, porque até a farda tem fome. Não há mais vergonha, só fúria e sede de justiça.”


Os analistas disseram que foi vandalismo. Mas para quem conhece Angola, sabe que foi desabafo, último recurso de quem já perdeu quase tudo, menos a vontade de mudar.


Vi fotos e vídeos partilhados em grupos de amigos: velhas mulheres com lenços na cabeça, jovens de telemóvel em punho, crianças de olhar espantado. O fogo do cartaz iluminou as caras cansadas, reacendeu antigas perguntas:

Quando é que a pátria será de todos?

Quando é que a verdade deixará de ser castigo?


O povo queimou não só o cartaz, mas também a resignação. Nesse dia, mesmo longe, senti a esperança acender-se no meio da confusão.


Soneto: O Dia em que o Povo Ateou Fogo às Mentiras


Ardeu o cartaz, ardeu a mentira,

ficou a cinza da ilusão queimada.

No rosto do povo, nenhuma parada,

só a esperança que em fumo se retira.


A polícia saqueia, a multidão delira,

cada um procura a dignidade roubada.

Na fogueira comum, verdade acordada,

grito de séculos preso na ferida.


Queimou-se o medo, acendeu-se o pranto,

o povo, de tanto esperar, já não canta,

mas marcha, exigindo novo caminho.


Oh Angola de promessas e enganos,

quem viu o povo a incendiar seus danos,

sabe que amanhã pode nascer mais limpinho.

 

Capítulo 5: A Esperança Reaprendida

 

A esperança não morre. Recolhe-se, finge dormir, mas volta sempre, escondida no olhar de quem acredita, mesmo sem provas, mesmo sem promessas.


Vivi muito tempo a pensar que a esperança era dom de quem ficava. Mas aprendi, com os anos, que ela também sobrevive em quem parte, mesmo quando a pátria se torna lembrança e o futuro é construído de longe, pedra a pedra, saudade a saudade.

No início do exílio, a esperança era desejo de voltar, era contar os dias à espera de notícias boas, era guardar recortes de jornal, ouvir vozes de Angola à distância, acreditar que o sacrifício, um dia, teria sentido. As malas, mesmo vazias, pesavam cheias de sonhos interrompidos.


Com o tempo, fui reaprendendo a esperar. A esperança deixou de ser espera passiva, tornou-se ato de resistência. Já não era só desejar a volta dos dias antigos, mas criar, onde estivesse, uma nova raiz, um lar onde o passado pudesse respirar sem vergonha. A esperança passou a ser feita de gestos pequenos: uma carta recebida, um telefonema de um amigo que sobreviveu à guerra, a notícia de uma criança angolana que terminou a escola, um novo poço aberto na aldeia, um reencontro entre vizinhos separados pela História.


Ouvi testemunhos de quem ficou: mulheres que reconstruíram casas, camponeses que nunca abandonaram a terra, professores que, mesmo sem salário, continuaram a ensinar, jovens que, em vez de fugir, decidiram fundar cooperativas, médicos que regressaram para abrir clínicas improvisadas no musseque, artistas que pintaram muralhas com esperança colorida, velhos que ensinaram às novas gerações a não desistir da memória.


Daqui, da distância, aprendi a celebrar cada pequena vitória, a reconhecer o heroísmo da persistência, a valorizar os gestos anónimos que mantêm o país vivo, mesmo quando a esperança parece não passar de utopia.


A esperança em Angola é como o embondeiro: cresce devagar, resiste à seca, as raízes mergulham fundo à procura de água, e, mesmo quando cortada, brota de novo do tronco partido.

Hoje, reaprendo a ter esperança em cada ligação inesperada, em cada fotografia de sorrisos partilhados, em cada notícia de reconciliação, em cada projeto social que nasce do povo e para o povo. Reaprendo a acreditar, não nos slogans nem nas promessas, mas na força humilde de quem nunca aceitou a derrota.


A esperança já não é aquela do primeiro dia, inocente e exuberante, mas é mais sábia, mais resistente. Não espera milagres do poder, mas exige mudanças reais, construídas devagar, como quem planta uma árvore sabendo que talvez só os netos colham sombra.


Soneto: A Esperança Reaprendida


Quando pensei que a esperança tinha partido,

Encontrei-a sentada à porta da memória,

Costurando retalhos da nossa história,

Trazendo à luz o que julgava perdido.


Vi-a no olhar de quem ficou vencido,

Mas teima em plantar futuro na escória,

No riso da criança, no suor sem glória,

No abraço do exilado nunca esquecido.


Esperança não é grito, é murmúrio lento,

Que atravessa o tempo, resiste ao vento,

Brota da raiz que ninguém vê crescer.


Angola reaprende no pão repartido,

No sonho do povo nunca adormecido:

Só quem espera a vida sabe renascer.

 

Capítulo 6: O Silêncio dos Herdeiros

 

A herança não é só feita de terras, casas ou nomes. É feita também do silêncio, das palavras guardadas, das perguntas que nunca chegaram a ser feitas.


Quando deixámos Angola, trouxemos mais do que o que cabia nas malas. Trouxemos silêncios: memórias caladas, dúvidas por esclarecer, saudades mal digeridas. Na mesa do jantar, as conversas tantas vezes morriam a meio, como se houvesse uma linha invisível entre o antes e o depois. Os mais velhos sabiam sorrir com dignidade, mas havia dores que não se diziam em voz alta. Aprendi cedo que o que não se conta pesa tanto como o que se perde.


No exílio, esse silêncio tornou-se ainda mais espesso. Entre amigos e família, cada um reconstruía a sua Angola na memória, mas poucos ousavam falar da perda, da injustiça, da vergonha, do que tinham visto ou vivido. Os filhos e netos, nascidos longe da terra, herdaram um país fantasma: sabiam de Angola por fotografias antigas, receitas partilhadas, canções, mas pouco lhes era explicado sobre o passado real.


Cresci com perguntas não respondidas:

Por que partimos?

O que aconteceu à casa do avô?

Quem ficou para trás?

A quem pertencem as histórias contadas a meia voz?


Com o tempo, alguns de nós tentaram reconstruir a genealogia, recuperar documentos, visitar ruínas do que foi lar. Outros preferiram o esquecimento, receando que mexer nas feridas só trouxesse mais dor. Mas o silêncio não é vazio. É matéria viva, tece relações, protege e afasta, constrói muros, por vezes até pontes.


Aos poucos, os mais novos começaram a fazer perguntas com coragem:

Pai, por que saímos mesmo de Angola?

O que sentiste ao deixar tudo para trás?

Alguma vez perdoaste?

Tens raiva, ou apenas saudade?


Hesitei, mas percebi que a maior traição seria calar-me mais uma vez. Expliquei o medo, as manhãs em que vizinhos desapareciam, as noites vestidas de silêncio, o dia em que me despedi da Cela sem saber se voltaria. Falei dos sonhos, dos fracassos, dos recomeços. Assumi as dúvidas, contei as alegrias e as culpas, e permiti que a memória se tornasse partilhada.


Os filhos de exilados carregam saudades herdadas, mas também o direito de questionar, de conhecer, de reconstruir. Notei que a nova geração já não aceita respostas vagas; quer datas, nomes, quer saber de que lado estivemos, que escolhas fizemos, que valores ficaram.


Um neto trouxe-me um desenho da escola: um mapa de Angola, pintado com cores vivas. Perguntou:

Avô, isto é mesmo a tua terra?

Tu eras feliz lá?

Ainda pensas em voltar?


Senti orgulho e melancolia. Disse-lhe que Angola vive em mim, mesmo longe. Confessei que a felicidade não era simples, mas era real. E disse-lhe, com verdade: Penso em voltar todos os dias, nem que seja com a memória.


Neste diálogo entre gerações, reconheço uma força maior do que qualquer silêncio. Os herdeiros têm direito à verdade, à história completa, aos detalhes que nos formaram e também às feridas que nunca cicatrizaram. Só assim, nomeando o passado e acolhendo as perguntas, se constrói uma família sem sombras, uma memória sem rancor, um futuro com raízes verdadeiras.


Soneto: O Silêncio dos Herdeiros


Herdeiro sou daquilo que não disse,

Do peso antigo que pairou na sala,

Da mágoa guardada em cada fala,

E do segredo que jamais se disse.


Cresci a perguntar por que se omite

A dor que não se mostra nem se exala,

O nome do que parte e não se cala,

O tempo que o silêncio não permite.


Um dia perguntei sem mais temor,

Rompi o muro, abracei a confissão:

Herança é nomear o que nos falta.


Só cresce livre quem conhece a dor,

Só vive pleno quem dá voz ao chão,

E faz do silêncio ponte que resalta.


Capítulo 7: A Farda Desbotada

 

O tempo apaga as cores das fardas, mas não desfaz a memória das mãos que as vestiram. Entre a ordem e o medo, entre a disciplina e a dúvida, ficou o pano gasto, e a pergunta nunca respondida: quem serve realmente o fardado?


Vivi os anos finais do regime colonial rodeado por uniformes. O da polícia, o do militar, o do funcionário que cruzava a vila com passo rígido, o do ferroviário com boné impecável e o do enfermeiro de bata engomada. Cada farda tinha o seu peso, a sua função, o seu segredo.

Para a criança que fui, farda era autoridade. Era também promessa de ordem, disciplina, e, em certos momentos, segurança. Mas cedo aprendi que podia ser igualmente sinónimo de medo: medo dos guardas, medo dos soldados, medo dos que chegavam à porta sem aviso.

Vi homens orgulhosos da sua farda, pais de família que só desejavam garantir o pão. Vi outros que usavam a mesma farda para impor distância, humilhar, ou calar quem não se dobrava ao poder de ocasião.


Quando deixei Angola, levei comigo a imagem desses uniformes: uns bem passados, outros já gastos, todos marcados pelo suor do clima, pelo pó das estradas, pela incerteza do futuro.

Depois, as notícias do tempo novo trouxeram relatos de novas fardas: cores diferentes, siglas novas, mas o mesmo olhar desconfiado, a mesma fronte erguida. Amigos contavam que muitos dos antigos mudaram apenas o distintivo, passaram de um regime para outro sem hesitar, seguindo a ordem, não a consciência.


Nas cartas, escutei memórias de quem vestiu a farda do partido, do novo Estado, e mais tarde sentiu o tecido a desbotar, não só com o tempo, mas com a desilusão.

A farda, afinal, é apenas pano. O que a enche de sentido, ou a esvazia, são as escolhas de quem a veste. Há quem a use para servir, há quem a use para dominar. Há quem a vista por necessidade, outros por vaidade.


Vi amigos que perderam o orgulho, e outros que nunca deixaram de acreditar na dignidade do serviço. Vi também muitos que, para sobreviver, tiveram de aprender a mudar de cor conforme o vento do poder.

Na diáspora, fardas tornaram-se recordações guardadas no fundo de gavetas, ou símbolos de uma juventude perdida, orgulho sem pátria, ou trauma sem cura.


A minha geração viu o tempo apagar as cores das fardas, mas não conseguiu apagar as perguntas:

Quem serve o fardado?

Ao povo, ao poder, à própria consciência?


Hoje, sei que nenhuma farda resiste intacta ao desgaste dos dias. O que fica, quando tudo se apaga, é a verdade, ou o remorso, de quem escolheu servir ou submeter.


Soneto: A Farda Desbotada


A farda que vesti já perdeu cor,

O tempo desbotou-lhe o pano e o brilho,

Ficou o peso antigo do estribilho,

Servir o povo ou só temer o senhor?


Tantas vezes jurei honra e valor,

Mas vi colegas dobrar-se ao trilho

Da ordem cega, esquecendo o auxílio

Que a cada irmão devia o servidor.


Agora vejo em sonhos a velha rua,

O fardado cansado, a alma nua,

Sem saber se cumpriu o seu papel.


Quem serve, afinal, se serve a lei?

Quem teme o chefe ou o povo a quem sonhei?

Só o tempo responde, com silêncio cruel.

 

Capítulo 8: O Regresso do Filho Perdido

 

Às vezes, para encontrar a casa, é preciso primeiro perder-se pelo mundo. E só regressa inteiro quem nunca deixou de carregar a terra no peito.


Vivi grande parte da vida a pensar no regresso como um sonho improvável. O exílio transforma a pátria numa fotografia antiga: cada linha do rosto, cada cor, cada esquina, permanece, mas envelhece à medida que os anos passam. A casa onde nasci, a rua onde corri, o campo onde brinquei, passaram a ser paisagem de memória, imunes às mudanças do tempo, mas vulneráveis à distância.


Conheci, nos caminhos da diáspora, muitos filhos de Angola, homens e mulheres que, tal como eu, levaram a pátria dobrada no bolso da alma. Em cafés de Lisboa, em bairros de Newark, nos mercados de Paris, nos encontros familiares em Luanda, ouvi sempre o mesmo fio condutor; a esperança de um regresso, o medo de não reconhecer o próprio lugar, a dúvida:

“Será que ainda sou daqui?

Ou já pertenço apenas à lembrança?”


Alguns regressaram cedo, movidos pela saudade ou pela promessa de reconstrução. Outros voltaram anos depois, já com filhos nascidos noutras terras, trazendo consigo não só malas, mas também ideias novas, hábitos diferentes, um outro olhar sobre o que é ser angolano.


Vi engenheiros que trocaram o conforto europeu pela aventura de erguer escolas no mato. Vi médicos que abriram clínicas improvisadas nas periferias de Luanda. Vi artistas que reinventaram a cultura local, misturando tradições antigas com visões do mundo. Vi netos de camponeses tornarem-se empresários, professores, líderes comunitários, fazendo do regresso um novo começo, e não apenas um retorno.

Mas o regresso não é fácil. As ruas mudaram de nome, as casas ganharam novos donos, os vizinhos são outros. Por vezes, o filho perdido é recebido com desconfiança, como quem volta estrangeiro à sua própria terra.


A adaptação exige humildade. É preciso aprender a escutar de novo o sotaque do musseque, respeitar os costumes que sobreviveram, reconhecer as cicatrizes da guerra, aceitar que a reconstrução da pátria é feita devagar, com mãos sujas de pó e coração aberto à mudança.

Há quem diga que só regressa quem nunca partiu de verdade. Eu acredito que regressa inteiro quem, onde quer que esteja, faz da esperança uma semente lançada ao vento, e um dia volta para ver crescer a árvore.


Hoje, vejo jovens formados fora de Angola que regressam com ideias novas, que lutam por justiça, que fundam cooperativas, que exigem transparência. Vejo mulheres que nunca aceitaram ser vítimas, homens que se recusam a ser cúmplices do silêncio.


O país renasce devagar, como quem aprende a caminhar de novo após longa doença. A reconstrução faz-se de mãos unidas, de memórias partilhadas, de vozes que se cruzam entre gerações.

No regresso do filho perdido, reconheço também o meu próprio percurso: não é só o regresso ao lugar, mas ao sentido, à dignidade, ao sonho que nunca morreu.


Soneto: O Regresso do Filho Perdido


Regresso à casa antiga sem saber

Se ainda sou do chão ou só da ausência,

Trago comigo a dor, a experiência,

E a esperança teimosa de viver.


Nos rostos vejo o tempo a renascer,

A sede antiga, a força da consciência,

O abraço que consola a diferença,

O medo de partir e de perder.


Sou filho do exílio e da procura,

Mas nunca me esqueci da raiz pura

Que em cada sonho insiste em florescer.


Angola é regresso e despedida,

É a pátria reencontrada na ferida,

Que só se cura quando se aprende a crer.

 

Capítulo 9: A Última Estátua

 

Chega sempre o dia em que o bronze cansa. Os heróis de ontem tornam-se sombra, e o povo, finalmente, ganha coragem para olhar de frente aquilo que antes era proibido questionar.


Durante décadas, as estátuas foram sentinelas do poder. Guardavam praças e avenidas, olhavam do alto, impunham silêncio. Primeiro vieram os bustos de governadores coloniais, orgulho em pose, nome inscrito para sempre na pedra fria. Mais tarde, chegou a era dos novos libertadores, que ergueram seus próprios monumentos com a pressa de ocupar o espaço dos antigos.


Cada estátua era um capítulo de uma história oficial, um convite à reverência, um aviso aos que ousassem discordar. Diziam-nos, desde pequenos: “Respeita o bronze, não questiones o mármore, não te aproximes do pedestal. ”As crianças aprendiam a contornar os monumentos como se fossem deuses, os velhos sussurravam memórias de quando o rosto era outro, mas a lógica do medo, a distância entre o povo e o pedestal, nunca mudava.


No exílio, aprendi que toda pátria carrega os seus ídolos: uns amados, outros temidos, alguns apenas tolerados pelo hábito ou pela resignação. Ouvia nas cartas dos amigos o peso desses monumentos: “Dizem que celebram a pátria, mas servem para lembrar quem manda. ”No rosto de cada estátua, o povo via a ausência de pão, de justiça, de voz.


Com o passar dos anos, as praças deixaram de ser lugares de encontro. Viraram cenários de parada, palco de discursos vazios, fundo mudo para fotografias oficiais. O povo olhava de longe, preferia sentar-se à sombra das árvores do que aos pés dos heróis.

Mas a memória não é de pedra. O tempo foi desgastando o respeito cego, e nas conversas sussurradas começaram a surgir perguntas proibidas:

Quem decide quem merece estátua?

Que história ficou por contar, quem ficou por homenagear?

Por que razão nunca há monumentos aos vencidos, aos esquecidos, às mães que perderam os filhos na guerra?


Veio o tempo dos protestos. Nas ruas de Luanda, de Benguela, de Huambo, as multidões deixaram de pedir licença ao bronze. Primeiro grafitaram, depois atiraram pedras, por fim ousaram derrubar. A cada queda, ergueu-se não só pó, mas uma onda de libertação, como se o chão ganhasse voz, como se o povo, por fim, pudesse reescrever a praça com os seus próprios passos.


Lembro de um relato enviado por um velho amigo:

“Ao ver a estátua cair, lembrei-me do meu pai, que nunca foi herói de bronze, mas construiu esta cidade pedra a pedra, sem que ninguém lhe erguêsse sequer uma placa.”


O gesto de derrubar a estátua não era só fúria ou vingança. Era pedido de espaço, necessidade de respirar sem tutela, ato de maturidade política, o povo dizendo: “Ninguém fala por nós, ninguém é pátria sozinho.”


Houve lágrimas e aplausos, gritos de liberdade e também de luto. Para muitos, a estátua caída era o fim de um ciclo de obediência, para outros, a dolorosa consciência de que a história precisa sempre de ser revista, de que toda memória, se não partilhada, se torna prisão.


As praças ficaram vazias por instantes. Houve quem temesse o caos, mas aos poucos, a ausência do bronze revelou o céu, deixou passar a luz, abriu espaço para outras vozes, outras memórias.


Vi fotografias da praça renovada: crianças a brincar onde antes não podiam pisar, velhos sentados a contar histórias de antigamente, jovens debatendo o futuro, vendedores ambulantes ocupando o espaço de todos.


No lugar da última estátua, há agora a promessa de uma nova cidadania. Talvez um dia surja ali uma árvore, um jardim comunitário, ou apenas o chão limpo, onde o povo possa finalmente ser dono do seu próprio destino.


O bronze um dia volta ao pó, mas a coragem de enfrentar o passado nunca se apaga.


Soneto: A Última Estátua


Caiu o bronze antigo do poder,

Ruiu com ele o medo e a mentira,

Ficou no chão o peso da mentira,

Nas praças livres, gente a renascer.


O povo viu, enfim, amanhecer

Um tempo em que o silêncio já não tira

O direito de saber, de quem conspira,

De perguntar por que se fez sofrer.


Já não se ergue o ídolo na avenida,

Nem se venera quem perdeu a vida

Na glória falsa de um trono traidor.


Semeia-se, no chão onde tombou,

O grito novo de quem se encontrou

E planta a pátria em vez de mais temor.

 

Capítulo 10: O Futuro em Construção

 

O futuro não se herda, constrói-se. Faz-se de escolhas diárias, de gestos pequenos, da coragem de aprender e de recomeçar. Ninguém caminha só — cada passo deixa marca, cada raiz silenciosa pode tornar-se voz e floresta.


Chegado ao fim deste livro, não carrego certezas, mas levo perguntas novas e um apelo que partilho convosco: o que faremos, agora, com o peso e a graça desta história? Reconstruir Angola, seja no coração do musseque, na aldeia esquecida, no bairro das cidades grandes, nos lares da diáspora, é missão de todos, tarefa que não cabe apenas ao Estado, ao partido ou aos poderosos.


O futuro começa nos gestos simples: num cumprimento entre vizinhos, na honestidade de uma venda, na palavra que consola, na mão que se estende para levantar quem caiu. É na escola pública onde um professor persistente resiste ao desânimo, na clínica improvisada onde se salva uma vida com quase nada, na jovem que escolhe estudar para servir e não para fugir.


Na diáspora, reconstruir Angola é guardar a língua, transmitir a história aos filhos, não deixar morrer as tradições nem as perguntas. É lutar contra a indiferença, lembrar que a pátria cabe em cada refeição partilhada, em cada carta enviada, em cada sonho que resiste à distância.


Mas o futuro pede mais: pede espírito crítico, coragem para discordar, vontade de ouvir o outro lado. Não haverá paz enquanto houver medo de falar, nem justiça enquanto houver exclusão, nem progresso enquanto só alguns colherem o fruto do país de todos.


É preciso transformar a saudade em projeto, o ressentimento em responsabilidade, a memória em semente de mudança. O passado não pode ser desculpa para a inércia, nem a dor pretexto para o ódio. Só um povo reconciliado com a sua própria história, sem omitir as falhas, sem disfarçar as feridas, pode construir um amanhã digno.


Este livro termina, mas o futuro começa todos os dias, em cada escolha, em cada perdão concedido, em cada mural pintado com esperança, em cada jovem que se recusa a aceitar a pobreza ou o medo como destino.


A reconstrução de Angola é tarefa inacabada, feita de mil mãos, mil sonhos, mil vozes.

Cabe a cada um de nós, dentro e fora das fronteiras, erguer as fundações de um país que seja verdadeiramente de todos.


Soneto:  O Futuro em Construção


Não herda o povo a pátria já formada,

Constrói-se ao som da dor e da vontade,

Nos gestos simples nasce a liberdade,

No olhar do outro, a pátria reencontrada.


Erguer Angola é obra demorada,

Pede coragem, justiça e verdade,

Pede esperança feita de humildade,

E a memória sempre iluminada.


Que a lição do passado seja ponte,

Que o erro antigo nunca mais se esconda,

Que o futuro se escreva com paixão.


Quem planta hoje, mesmo sem ter fonte,

Dá sombra ao filho e flor à própria ronda:

O amanhã começa em cada mão.

 

Epílogo: Quando a Terra Voltou a Falar

 

Há palavras que só a terra sabe pronunciar. E há verdades que só o regresso interior permite escutar.


No fim de toda caminhada, resta a pergunta: Para onde regressam os que sempre partiram?

Durante anos, procurei Angola no passado, nas histórias do avô, nos cheiros guardados na pele, nas cartas escritas a medo e nas notícias distorcidas pelo tempo e pela distância.

Mas aprendi que a terra não desaparece, mesmo quando nos afastamos dela. A terra é paciente: espera-nos debaixo das cinzas, revela-se nos gestos pequenos, ressurge na língua que teimamos em ensinar aos filhos, nos sabores que tentamos repetir à mesa, no sonho teimoso de um regresso, nem que seja apenas por palavras.


Um dia, já adulto, percebi que é preciso reconciliar o silêncio herdado. A verdadeira liberdade começa quando deixamos a terra falar, quando escutamos as suas dores e alegrias, quando aceitamos que somos feitos de raízes e de voo, de perdas e de reencontros, de memória partilhada e de esperança aprendida.


A pátria não é só o solo que pisámos, mas também a coragem de reconhecer as sombras, de resgatar o que ficou calado, de aceitar que a terra não pertence a ninguém, mas todos pertencemos a ela.


Ouvi amigos dizerem que a terra fala em sussurros, nas primeiras chuvas que caem sobre o capim seco, no abraço de quem nos recebe de volta, na lágrima de quem perdoa sem esquecer.

Foi então que compreendi: não se trata apenas de voltar, mas de fazer da vida um retorno constante à verdade, à justiça, à dignidade, à terra que nos sustenta, mesmo quando tudo parece perdido.


Se este livro serve de algo, que seja para lembrar que ninguém caminha sozinho, que a história é feita de muitas vozes, e que só seremos livres quando a terra voltar a falar, e nós soubermos, finalmente, escutá-la.


Soneto: Quando a Terra Voltou a Falar


Calou-se o tempo, mas a terra fala,

No vento antigo que atravessa o peito,

No cheiro da raiz, no chão perfeito,

No nome que a memória nunca cala.


Caminho de regresso sem escala,

Trazendo o coração já mais sujeito

À dor do exílio, ao riso satisfeito,

À pátria reencontrada sem bengala.


Aprendo a escutar a voz do chão,

A semente escondida na canção,

O eco de esperança renascida.


Se volto, é porque nunca me ausentei,

Sou terra, sou memória e sou lei,

Angola em mim, promessa repartida.


FIM

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