top of page

A Equipa Inesquecível: Lembranças de Uma Sociedade em Harmonia

12 de out de 2024

5 min de leitura

3

0

0

Olho para esta foto e sou imediatamente transportado para o ano de 1975, quando a nossa vida, embora prestes a mudar para sempre, era um reflexo da convivência e da união que tanto prezo até hoje. Na Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo, ou simplesmente EICNES, vivíamos uma realidade que poucos fora da nossa pequena comunidade podiam entender. Ali, éramos uma família multirracial, unidos não apenas pelo desporto, mas pelos laços de amizade e respeito que transcendiam cor, classe ou origem. Era um microcosmo do que eu sempre imaginei que Angola poderia ser: um lugar onde todas as etnias e culturas conviviam em harmonia.


Eu, que vim de uma Angola rural, de Santa Comba, no município da Cela, carregava comigo a experiência de uma infância vivida entre o trabalho no armazém da minha família e as amizades profundas que formavam a base do meu ser. Essa convivência rica em diversidade e a união entre todos os alunos da EICNES ajudaram a solidificar em mim os valores que carrego até hoje. Não havia divisões na nossa escola; éramos apenas jovens cheios de sonhos, empenhados em aprender e em construir um futuro melhor para todos.


EICNES: Mais que uma Escola Técnica

A EICNES era muito mais do que uma simples escola técnica. Era um lugar de crescimento pessoal e profissional, mas também um espaço de refúgio, de liberdade, onde aprendíamos a nos preparar para a vida em todas as suas facetas. Cada oficina, cada aula teórica era um tijolo na construção das nossas vidas, ensinando-nos não apenas como trabalhar com as mãos, mas também como pensar, planejar e, mais importante, como conviver em sociedade.


Nós, jovens de Santa Comba, Nova Lisboa (atual Huambo), e outras partes de Angola, encontrávamos na escola um segundo lar. Ao lado dos amigos, absorvíamos não apenas o conhecimento técnico, mas também o valor da camaradagem, do respeito mútuo e da empatia. Em meio a um país prestes a enfrentar mudanças monumentais, a EICNES era um lugar de estabilidade, um porto seguro onde podíamos ser quem éramos e, ao mesmo tempo, sonhar com quem poderíamos nos tornar.


O Espírito de Equipa

Essa convivência harmoniosa tinha no desporto o seu maior símbolo. No basquetebol, em particular, encontrávamos a perfeita representação da união e do trabalho em equipa. Naquela foto que tenho diante de mim, vejo rostos que me são tão familiares quanto os da minha própria família. De pé, da esquerda para a direita, estão António Coimbra, Zé Bravo, Mário, e o meu primo, Arlindo Silva. Na fila de baixo, da esquerda para a direita, estão Rui Grilo, Albano Ferreira, e Orlando Carneiro Muton.


O Albano e o Zé Bravo eram mais que amigos para mim; eram como verdadeiros irmãos de sangue. Juntos, crescemos, compartilhando não só o campo de basquetebol, mas também as alegrias e desafios da vida. Foi com eles que aprendi lições de lealdade, perseverança e resiliência. Mesmo que a vida tenha nos levado por caminhos diferentes, nunca deixei de sentir a presença deles em mim, como se fizessem parte indissociável da minha própria história.


O Jogo contra os Maristas de Luanda: Um Encontro Memorável

Lembro-me como se fosse ontem dos dias de treino no campo da EICNES. O som da bola quicando no chão, o ranger dos tênis sobre a quadra, as risadas que ecoavam entre nós enquanto nos preparávamos para mais um desafio. A adrenalina antes de cada jogo era intensa, mas não era a vitória o que mais nos movia. O que realmente importava era o sentimento de estarmos ali, juntos, lutando lado a lado por algo maior do que nós mesmos.


Um dos momentos mais marcantes foi o jogo contra os Maristas de Luanda, uma equipa que, na época, era conhecida e respeitada por todo o país. Não éramos favoritos; sabíamos disso. Os Maristas eram campeões, uma equipa de prestígio, formada em um colégio interno de padres, treinada para a excelência. Nós, a modesta equipa da EICNES, éramos vistos como os "azarões", mas não nos importávamos. O que nos movia era o espírito de equipa, a força da nossa união e a vontade de nos testarmos contra os melhores.


Nosso diretor, Dr. Hilário Borges, um ex-padre que agora era casado com a graciosa Dona Maria do Carmo Borges, organizou o encontro. Ele sempre acreditou em nós, mesmo quando as probabilidades não estavam a nosso favor. Era um homem de visão, alguém que via no desporto não apenas uma atividade física, mas uma forma de nos ensinar lições de vida.


Quando o jogo começou, ficou claro que os Maristas estavam em um nível diferente. Eles jogavam com uma precisão que só os anos de treino intenso podiam proporcionar. Nós, por outro lado, jogávamos com o coração, com a garra que vem de quem sabe que tem pouco a perder e tudo a ganhar. Cada ponto que fazíamos era uma pequena vitória. Eu olhava para os rostos dos meus companheiros – Albano, Bravo, António, Arlindo – e via determinação e alegria. Era essa alegria de estarmos juntos que nos impulsionava.


O Cesto Inesquecível: Um Símbolo de Esperança

Com o jogo já decidido e o relógio marcando os segundos finais, algo inesperado aconteceu. António Coimbra, sempre tranquilo e confiante, pegou a bola no meio-campo. Sem pensar muito, lançou-a com força, quase como um gesto de despedida.


Para nossa surpresa, a bola descreveu uma trajetória perfeita e caiu diretamente na cesta. O campo explodiu em risadas e aplausos. Naquele momento, o resultado do jogo deixou de importar. O que importava era o sentimento de realização, de termos jogado com o coração, de termos compartilhado um momento que nunca mais esqueceríamos.


Mesmo os jogadores dos Maristas sorriram e reconheceram o feito. Aquela jogada inesperada tornou-se um símbolo do espírito que nos unia: a coragem de tentar, o prazer de estarmos juntos, e a certeza de que, no fim, o que realmente importa não é o placar, mas os momentos que partilhamos ao longo do caminho.


Uma Lição de Amizade e Respeito

Após o apito final, houve respeito mútuo entre as equipas. Os Maristas, mesmo sendo uma equipa campeã, reconheceram nosso esforço e dedicação. E nós, por outro lado, aprendemos muito com eles – não apenas sobre basquetebol, mas sobre a dignidade em competir, o respeito pelos adversários, e a importância de nunca desistir, independentemente das circunstâncias.

Aquele jogo foi muito mais do que uma simples partida amigável. Foi uma lição de vida, uma experiência que nos mostrou que, mesmo quando as probabilidades não estão a nosso favor, podemos encontrar alegria, crescimento e realização em cada pequeno momento.


Uma Reflexão sobre o Futuro

Ali, naquela quadra da EICNES em 1975, éramos todos um só. Não havia distinções entre nós – brancos, negros, mestiços – todos jogávamos sob as mesmas regras, compartilhávamos os mesmos sonhos e lutávamos pelos mesmos objetivos. O espírito de equipa, de convivência entre etnias e culturas, era algo que se respirava todos os dias na nossa escola.


Essa experiência, e tantas outras que vivi naqueles anos, moldaram a minha visão de mundo. Elas ajudaram a forjar o meu caráter, minha forma de entender a importância da diversidade e da união. Até hoje, carrego comigo as lições que aprendi ali – sobre amizade, respeito, e o poder transformador do desporto.


Olhando para essa foto, não vejo apenas jovens com uniformes de basquetebol. Vejo um momento no tempo que simboliza tudo o que acredito: a força da convivência pacífica, da união em prol de algo maior, e a esperança de que, juntos, podemos superar qualquer desafio.



Posts Relacionados

Comentários

Compartilhe sua opiniãoSeja o primeiro a escrever um comentário.
bottom of page