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Areia e Cristais do Tengue: Lembranças de uma Infância ao Lado do Meu Pai

10 de nov de 2024

4 min de leitura

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Os Primeiros Anos e a Camioneta Basculante

Nos primeiros anos da década de 70, enquanto Angola vivia as mudanças que precederam a independência, eu vivia momentos inesquecíveis ao lado do meu pai. Ele não apenas cuidava da nossa loja com dedicação, mas também possuía uma camioneta basculante ou "vasculante" come dizia o meu pai, com carroça hidráulica. Com este caminhão robusto, ele fornecia materiais essenciais às empresas de construção da região, transportando brita, pedras, areia, tijolos e até madeira para os fornos das padarias locais.


Nas férias escolares, meu irmão e eu tínhamos um privilégio especial: tornávamo-nos os “navegadores” do pai, acompanhando-o em suas jornadas. Íamos juntos à cerâmica local ou ao rio Keve, onde coletávamos a areia grossa necessária para construções mais robustas. Mas o destino que mais nos fascinava era uma sanzala chamada Tengue.


Tengue: A Terra da Areia Especial

A areia de Tengue era diferente, especial, destinada ao acabamento mais refinado de estuque. Situada próxima a um lago que se conectava ao rio Keve, a sanzala Tengue oferecia a areia mais pura e delicada da região. Ali, eu e meu irmão víamos a simplicidade e a determinação dos homens que trabalhavam com o pai.

No entanto, uma memória específica desse lugar permanece tão vívida quanto as águas calmas do lago – um dia em que meu irmão e eu decidimos explorar além do esperado.


A Canoa e o Medo do Lago

Lembro-me claramente de quando meu irmão e eu encontramos uma canoa esculpida de tronco, a mesma que os homens da sanzala usavam para cruzar o lago. Estava ali, esperando por nós, e sem pensar muito, decidimos entrar. Mas nossa aventura rapidamente se transformou em pânico quando a canoa começou a balançar – até que, finalmente, virou por completo!


Num instante, estávamos na água. O lago, geralmente calmo, agora parecia ameaçador. Sabíamos que aqueles profundos esconderijos aquáticos abrigavam crocodilos e hipopótamos, e o temor de que algum deles estivesse por perto nos apavorou. Lutamos desesperadamente para virar a canoa de volta, com as mãos tremendo, tentando equilibrá-la. As ondas pequenas que nós mesmos causávamos dificultavam ainda mais a tarefa.


Depois de algumas tentativas frenéticas, conseguimos. Porém, o desafio ainda não havia acabado. Com nossos corações disparados, começamos a tentar subir de volta na canoa virada, escorregando a cada tentativa, o medo nítido no olhar. Foi somente depois de um grande esforço, e talvez de uma dose de sorte, que conseguimos voltar à superfície da canoa, exaustos e aliviados.


A Carga de Areia e o Canto dos Homens

Depois do susto com a canoa, era sempre um conforto voltar ao trabalho na carroça da camioneta vasculante. Chegando a Tengue, meu pai e os homens da sanzala começavam a carregar o caminhão com a areia especial. Ali, ao lado dos trabalhadores, me posicionava com uma pá nas mãos, pronto para ajudar no que podia. Os homens trabalhavam arduamente, cada um em seu ritmo, enquanto cantavam uma canção nativa que ecoava no ar, preenchendo o ambiente com uma energia calorosa e resiliente.


Eu sentia que minha presença, mesmo sendo apenas a de um garoto, era apreciada. A cada pá de areia que eu jogava na carroça, parecia que os homens se motivavam, como se minha energia juvenil os impulsionasse a trabalhar mais rápido. A música, o ritmo das pás, e o olhar atento do meu pai formavam uma harmonia que eu carregaria para sempre na memória.


O Cristal como Recompensa

No final do dia, depois de muito suor e risadas, havia sempre um momento de recompensa. Um dos homens me oferecia um presente – um grande cristal, que eu aceitava com orgulho. Era uma pequena joia que guardava com carinho, simbolizando o esforço compartilhado e a gratidão que fluía naquele trabalho conjunto. Esses cristais brilhavam como uma lembrança viva de minha infância, carregando os fragmentos de cada dia passado ao lado do meu pai.


A Areia do Tengue: Uma Preciosidade

A areia de Tengue era única porque precisava passar por um processo meticuloso. Os homens lavavam a areia, removendo o barro com água corrente, pás e enxadas. Era um trabalho árduo, que exigia dedicação e técnica, e meu pai fazia questão de compensar os homens da melhor forma possível, ainda que o lucro fosse modesto ao vender essa areia refinada para as construtoras. Muitos desses homens também nos visitavam na loja, onde compravam artigos essenciais para suas famílias.


A loja era um ponto de encontro onde a comunidade se reunia, onde os laços se fortaleciam. Esses homens da sanzala de Tengue não eram apenas clientes ou trabalhadores; eram parte de algo maior, uma comunidade unida pela simplicidade e pelo esforço diário.


Lembranças que Resistem ao Tempo

Hoje, aos 65 anos, os momentos que vivi ao lado do meu pai e dos homens da sanzala de Tengue permanecem vívidos em minha memória. Esses dias de trabalho ao lado de pessoas simples e dedicadas representam para mim lições de respeito, colaboração e gratidão. Foram momentos que moldaram meu caráter, ensinaram-me o valor do esforço coletivo e me mostraram que, em meio ao trabalho duro, também reside a alegria de construir algo juntos.


Cada cristal que guardo dessa época é uma lembrança de quem eu era e do mundo em que cresci. São fragmentos de uma infância abençoada, vivida na companhia de meu pai, de sua camioneta basculante e dos homens da sanzala de Tengue – unidos pelo brilho da areia e pela força do espírito humano.



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