Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

Entre Dois Fins do Mundo: Da Cela em 1961 ao Êxodo de Nova Lisboa em 1975
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“A memória é o alicerce da identidade: quem esquece as raízes perde o rumo, mesmo quando o vento do tempo sopra forte.”
— João Elmiro da Rocha Chaves
Introdução
A história da minha família, como a de tantas outras lusas em Angola, é feita de raízes profundas, coragem silenciosa e provas de resistência que transcendem o tempo. Nascidos da esperança dos pioneiros portugueses e moldados pela intensidade africana do planalto central, fomos, durante décadas, construtores de sonhos, trabalhadores da terra e zeladores de uma comunidade mestiça e plural.
Da Cela Velha a Santa Comba, do hospital onde eu, o meu irmão Herberto e as minhas duas irmãs demos os primeiros passos no mundo, até às ruas movimentadas e aos campos férteis da atual Waku-Kungo, Cela - vivemos os tempos da infância e do amadurecimento entre a serenidade dos dias comuns e as sombras que prenunciavam tempestade.
As manhãs cheiravam a terra vermelha molhada, o riso das crianças misturava-se com as vozes dos mais velhos, e o horizonte, largo e azul, parecia prometer eternidade.
Ali aprendemos a respeitar o outro, a natureza e a cultura herdada de quem viera antes de nós — valores que me acompanham até hoje e que procuro transmitir às gerações vindouras.
No entanto, como tantas outras famílias, aprendemos cedo que a História raramente respeita o sossego dos que apenas desejam paz.
Entre dois fins de mundo — 1961 e 1975 —, a vida da nossa família foi duas vezes virada do avesso por ondas de violência e mudança, obrigando-nos a reinventar o sentido de casa, pertença e sobrevivência.
Testemunhámos a força das mulheres e dos homens anónimos que, de armas na mão ou com gestos de ternura, defenderam a dignidade diante do abismo. Fomos protagonistas e testemunhas de episódios onde a linha entre o quotidiano e o extraordinário se esbateu, e onde cada escolha — por mais simples que fosse — passou a ter o peso do destino.
É sobre essas marcas, essas lições e essa herança de esperança e dor que escrevo.
Quero dar voz aos que vieram antes de mim, honrar a coragem dos que resistiram e deixar à minha descendência, e a quem quiser ouvir, um retrato fiel das nossas origens, dos nossos medos, e da inquebrantável vontade de viver — mesmo quando tudo parece perdido.
Que este relato sirva não só para preservar a verdade e a dignidade de quem caminhou antes de nós, mas também para inspirar as gerações futuras a nunca esquecerem de onde vêm, nem o preço da liberdade, da paz e da identidade.
Convido o leitor a viajar comigo por estes caminhos de memórias — feitos de dor e esperança, de medo e coragem — onde cada história é uma semente lançada à terra da eternidade.
Raízes na Cela e em Santa Comba
As verdadeiras raízes de uma família não se veem apenas nos registos civis, mas sentem-se no cheiro da terra, no som dos nomes pronunciados com respeito e nos gestos repetidos de geração em geração. A Cela Velha foi para a minha família o primeiro reduto, o ponto de partida e o abrigo das primeiras alegrias e das mais fundas inquietações.
Foi no Hospital da Cela, edifício austero de paredes brancas e alma cheia de histórias, que eu, o meu irmão Herberto e as minhas duas irmãs viemos ao mundo. A minha mãe, mulher de fibra e de ternura, ali deu à luz em dias de paz e em horas de incerteza — como na véspera do nascimento do Herberto, quando se ouviam rumores de ataques e os homens de coragem, como o meu pai, guardavam portas e corações.
Dali seguimos para Santa Comba, então cidade vibrante no coração do planalto central angolano, batizada mais tarde depois da Independencia como Waku-Kungo. Santa Comba era uma terra onde o tempo corria a seu ritmo, entre o tilintar das badaladas da igreja, as conversas demoradas à sombra dos embondeiros e as correrias das crianças ao fim da tarde, com os pés descalços marcando trilhos na terra vermelha.
As manhãs começavam cedo, com o chilrear dos pássaros, o aroma do café acabado de moer e o murmúrio dos trabalhadores dirigindo-se para os campos, silos ou oficinas. Os dias eram preenchidos pelo labor — a escola, as pequenas lojas, a venda do pão, o vaivém das camionetas, as missas ao domingo e os mercados onde se cruzavam portugueses, angolanos, mestiços, ovimbundos e tantas outras gentes.
O nosso quintal era um mundo: havia galinhas na capoeira, árvores de fruta, canteiros de mandioca e batata-doce, e, sempre, a presença atenta dos cães e dos gatos que faziam parte da família. Aprendíamos a respeitar a natureza — não como coisa distante, mas como continuidade do próprio sangue. Sabíamos distinguir as estações pelo cheiro do ar e pelas cores do céu.
Ali se consolidaram as grandes lições de vida.
Aprendemos a partilhar o que tínhamos, mesmo quando pouco havia; a ouvir os mais velhos, cuja palavra era lei e cujas histórias se contavam ao serão, entre o chiar do petromax e o estalar da lenha no fogão. Respeitávamos o sagrado e o profano, as festas do Entrudo e as procissões, os rituais da lavoura e os mitos ancestrais das gentes do planalto.
A minha mãe ensinava-nos a arte da espera e do cuidado — a paciência para escutar, a coragem para agir e a humildade para agradecer. O meu pai, homem de poucas palavras e de gestos firmes, transmitia o valor da honra, do trabalho e da responsabilidade: “Ser justo é mais importante do que ser forte”, dizia, ajeitando o seu boné de pala — não o clássico chapéu de palha, mas aquele boné robusto e inconfundível, tão prático quanto emblemático da sua personalidade — antes de sair para o campo ou para a loja.
A loja do meu pai, situada no outro lado da rua do Bar Escondidinho, era muito mais do que uma simples mercearia: era um verdadeiro ponto de encontro da comunidade de Santa Comba. A fachada modesta, voltada para a esquina estratégica daquela artéria central, distinguia-se pelo letreiro gasto pelo sol e pelo movimento constante de clientes de todas as idades e origens.
Atrás do balcão, o meu pai — sempre com o boné de pala bem posto — recebia todos com o mesmo olhar atento, conhecendo pelo nome a maioria dos fregueses. As prateleiras bem arrumadas ostentavam arroz, milho, açúcar, óleo, vinho português, latas de sardinha, sabão azul e branco, café, pacotes de bolachas, rebuçados e toda a variedade possível para suprir as necessidades da vila.
O aroma do café moído misturava-se com o cheiro do sabão e das especiarias, criando uma atmosfera inconfundível. As crianças atravessavam a rua do Escondidinho com moedas suadas na mão, sonhando com caramelos ou rebuçados coloridos. Os homens, ao fim da tarde, paravam para comprar pão fresco, trocar novidades ou pedir fiado até ao fim do mês. As mulheres vinham buscar farinha ou azeite e aproveitavam para dois dedos de conversa ou um conselho da vizinhança.
O Bar Escondidinho, sempre animado, estava mesmo ali defronte: por vezes os clientes do bar atravessavam para comprar cigarros, petiscos ou algo esquecido no improviso da noite. Era comum ouvir as gargalhadas e as conversas do outro lado da rua, sinais de uma vila viva, pulsante e plural.
A loja do meu pai era extensão natural da casa e da vida dos habitantes de Santa Comba. Ali, além de se vender, escutava-se e aconselhava-se, resolviam-se mal-entendidos, selavam-se amizades e, por vezes, ficava-se só a ver o tempo passar, apreciando o pôr-do-sol sobre a rua vermelha e poeirenta.
No final de cada dia, o meu pai, sentado à porta, observava o movimento da rua, orgulhoso daquele pequeno mundo — simples na aparência, mas rico de histórias, afetos e memória.
Hoje, olhando para trás, vejo como cada pedra daquela terra, cada sombra dos eucaliptos à beira da estrada, cada sorriso rasgado ao entardecer, foi tecido de coragem, saudade e pertença. Santa Comba não era apenas o lugar onde crescemos: era o cadinho onde se fundiam as nossas identidades, o palco das nossas primeiras conquistas e derrotas, o berço das memórias que nenhum exílio conseguiria apagar.
15 de Abril de 1961: O Hospital Cercado
A madrugada de 15 de Abril de 1961 trouxe um silêncio denso à Cela, quebrado apenas pelo sussurrar ansioso das enfermeiras e pelo ranger de portas no hospital. As paredes brancas, iluminadas pela luz mortiça das lamparinas a petróleo, pareciam vibrar ao ritmo do medo que percorria corredores e enfermarias madres franciscanas. No ar, misturavam-se o cheiro a éter, a suor nervoso e a terra molhada da noite, enquanto o vento fazia estremecer as folhas dos embondeiros e o mundo lá fora parecia suspenso.
Eu tinha apenas dois anos de idade e, como tantas outras crianças indefesas, era alvo fácil para a barbárie. Hoje sei, pela voz dos mais velhos, que os homens da UPA tinham sido treinados para matar crianças rapidamente — segurando-as pelos calcanhares e atirando com violência o corpo e a cabeça contra a parede. O horror desta realidade não pode, nem deve, ser esquecido. Se tivessem conseguido entrar, eu — como tantas outras crianças inocentes — não deveria ter sobrevivido. A verdade crua é esta: o simples facto de estar aqui para contar esta história foi um milagre tornado possível pelo sangue-frio e pela coragem dos nossos.
A minha mãe, deitada num dos quartos do hospital, sentia o peso do mundo sobre si. Os batimentos do seu coração misturavam-se com os sons do corredor: os passos apressados dos médicos, o choro abafado de outra mulher, o compasso ansioso do relógio pendurado na parede. Cada ruído era amplificado pela tensão da espera: um grito distante, uma voz a rezar baixinho, o tilintar de instrumentos médicos num tabuleiro de metal. De vez em quando, a enfermeira vinha ajustar-lhe a almofada, sussurrando palavras de encorajamento: “Está tudo bem, Dona Vivelina. Aqui dentro, nada de mal lhe acontecerá.”
Lá fora, o meu pai — de boné de pala bem colocado, semblante fechado, mas decidido — não arredava pé da porta do hospital. Os olhos percorriam as sombras, atentos a cada movimento suspeito. O grupo de homens a seu lado mantinha-se silencioso, partilhando cigarros, armas apertadas nas mãos, prontos para o que desse e viesse. De tempos a tempos, davam uma ronda ao hospital, e um deles espreitava ao fundo da rua, tentando adivinhar se aquele rumor era vento ou o inimigo a aproximar-se. A noite parecia interminável. Só os mais velhos murmuravam, baixinho, histórias de outros tempos e promessas de proteção divina.
No hospital, as crianças dormiam inquietas nos braços das mães. Nos corredores, havia quem rezasse terço, quem se ocupasse a limpar e a arrumar, tentando ignorar o pânico que ameaçava tomar conta de todos. As sombras dançavam nas paredes, e cada luz tremeluzente parecia aumentar o tamanho do perigo lá fora.
O tempo ficou suspenso até o nascer do sol. E então, um milagre: o ataque anunciado não aconteceu. A resistência daqueles homens à porta — firmes, determinados, muitos deles sem nunca ter disparado uma arma — travou a investida da UPA. Dentro do hospital, a notícia correu de boca em boca: “Estamos salvos, Dona Vivelina, estamos salvos.” Houve quem chorasse de alívio, quem se ajoelhasse, quem simplesmente abraçasse quem estava mais perto.
Dois dias depois, a 17 de Abril, nasceu o meu irmão Herberto. O reencontro dos meus pais, após horas de medo e separação, foi silencioso, mas carregado de sentido: o meu pai entrou finalmente no hospital, boné de pala na mão, o rosto cansado e os olhos húmidos. Olhou a minha mãe, segurou-lhe a mão e ficou ali, em silêncio, a agradecer por aquela vitória da vida sobre a ameaça.
Ninguém que ali esteve esqueceria aquele dia. O hospital não era apenas um edifício — era um símbolo da resiliência de toda uma comunidade. E o olhar do meu pai, naquele momento, dizia tudo: cumprira o seu papel de guardião. A partir dali, sabíamos que, enquanto houvesse coragem e união, a esperança teria sempre lugar entre nós.
Crescer em Santa Comba: Vida, Sonhos e Vínculos
Após o medo e a resistência daqueles dias difíceis na Cela, a vida seguiu em Santa Comba, onde a infância podia, por fim, respirar e crescer.Santa Comba, mais tarde chamada Waku-Kungo, não era apenas uma cidade — era o verdadeiro palco da nossa formação, o lugar onde o quotidiano ganhava cor e os sonhos se alimentavam da paisagem e das pessoas.
A nossa casa, de paredes caiadas e janelas abertas para a rua, era o centro do mundo. No quintal, o cheiro da terra revolvida misturava-se ao das mangas maduras e do café secando ao sol. Havia sempre cães à espreita de um afago, gatos dormindo nos cantos mais quentes, e galinhas a debicar grãos entre as plantas de mandioca e batata-doce.Ali, entre árvores frondosas e sombra amiga dos embondeiros, passávamos horas a inventar brincadeiras, a trepar muros, a construir pequenos impérios de pedra e lama, a sonhar com horizontes mais vastos do que o próprio planalto.
As manhãs começavam cedo com o rumor dos trabalhadores a caminho das fazendas, o chilrear dos pássaros, e a voz da minha mãe, paciente e firme, a chamar para o pequeno-almoço. O ritual das refeições era sagrado: pão fresco, café acabado de coar, fruta do quintal e, muitas vezes, histórias partilhadas em volta da mesa — umas vezes alegres, outras carregadas de advertências e saudade.
O percurso para a escola era feito a pé, entre vizinhos de todas as cores, sotaques e credos. A sala de aula era um pequeno universo de encontro: aprendíamos a tabuada e a gramática, mas sobretudo aprendíamos o valor da amizade, do respeito mútuo e da curiosidade pelo outro. Os professores, maioritariamente vindos da metrópole, ensinavam-nos tanto com palavras como com o exemplo; as lições de vida eram tantas vezes dadas no pátio ou durante as festas do ano letivo quanto nos livros.
O regresso a casa era quase sempre uma aventura. Parávamos junto ao rio Keve, tentávamos pescar à linha, molhávamos os pés na água fresca, disputávamos corridas e sonhávamos com viagens para lugares que só conhecíamos dos atlas e das conversas dos adultos.
Ao final do dia, Santa Comba era invadida por aromas: o pão a cozer no forno comunitário, o feijão a borbulhar nas panelas, o fumo das fogueiras, e o perfume das flores do mato trazidas pela brisa do entardecer.
A comunidade era unida, solidária na alegria e na dificuldade. Na loja do meu pai, como já contei, cruzavam-se portugueses, angolanos, mestiços, ovimbundos; ali se trocavam notícias, se negociavam dívidas, se marcavam encontros, se perdoavam ofensas antigas. As festas religiosas, o Entrudo, as procissões, os bailes e os jogos de futebol eram celebrações de pertença e diversidade.
A minha mãe ensinava-nos a esperar com paciência, a servir com humildade, a agradecer cada dádiva da terra. O meu pai, sempre de boné de pala “hulagan” ajustado, era exemplo de dignidade, trabalho e lealdade.Foi naquela terra, naquele tempo, que aprendi o valor da palavra dada, da mão estendida e do olhar cúmplice entre vizinhos.
Santa Comba foi, para mim e para os meus irmãos, a forja dos afectos e das certezas. Ali demos os primeiros passos, caímos, levantámo-nos, e aprendemos que pertença é, acima de tudo, memória e compromisso com quem caminha ao nosso lado.
Hoje, cada vez que evoco esses dias, sinto o pulsar de uma Angola perdida — mas nunca esquecida — e a certeza de que as verdadeiras raízes resistem ao tempo e ao exílio.
1975: O Último Êxodo de Nova Lisboa
O ano de 1975 trouxe consigo o pressentimento de um fim e o início de uma nova e dolorosa travessia. Angola encontrava-se à beira da independência, mas também à mercê de forças que ameaçavam desintegrar não só um país, mas também laços familiares, vizinhanças e a própria identidade dos seus habitantes.Os meses que antecederam agosto foram marcados por rumores constantes de violência, movimentos de tropas, desconfiança e medo. A esperança de uma transição pacífica cedo se transformou em sobrevivência à vista desarmada.
No dia 6 de agosto de 1975, a nossa vida mudou para sempre. Santa Comba, a terra onde crescemos, foi subitamente tomada pelo caos.Às primeiras horas da madrugada, irrompeu um ataque violento: a FNLA investiu contra a delegação do MPLA, numa ofensiva que não poupou sequer crianças recém-recrutadas.
Ouvimos gritos lancinantes de “mamawê”, o sinal de pânico e terror, e vimos jovens — muitos ainda crianças — a saltarem pelas janelas na tentativa de escapar, apenas para serem sumariamente executados.A violência era implacável, cega, e não escolhia rosto.
Durante toda aquela manhã, permanecemos fechados em casa, com o coração a bater descompassado e a incerteza a crescer como sombra ameaçadora.A cidade, antes vibrante e familiar, tornara-se campo de batalha, tomada pelo medo, pela desordem e pelo som ensurdecedor das metralhadoras e dos rockets que rebentavam no horizonte.
Quando, já ao final da tarde, percebemos que a nossa única esperança era fugir, reunimos o pouco que pudemos carregar — documentos, algumas roupas, memórias apressadas, e a coragem que resta a quem vê tudo ruir.Abandonámos a nossa casa, a loja, os vizinhos, e até a ilusão de que aquela terra seria sempre nossa.Partimos para Nova Lisboa, a promessa de um refúgio temporário e a angústia de quem não sabe se regressa, se sobrevive, ou sequer se voltará a ver o rosto dos seus.
A viagem até Nova Lisboa foi feita entre lágrimas contidas, silêncios pesados e um olhar fixo no retrovisor, como se ali, naquela última imagem da cidade, pudéssemos conservar tudo aquilo que nos estava a ser roubado.
No nosso coração levávamos não só o medo, mas também a dignidade e a memória de gerações — aquilo que nem a guerra, nem o exílio, poderiam apagar.
Nova Lisboa acolheu-nos, como a tantos outros, numa atmosfera de desalento e ansiedade. Os próximos dezasseis dias iriam revelar-se uma provação à altura dos maiores desafios da nossa história familiar.
Dezasseis Dias de Limbo e Fome
Nova Lisboa, cidade outrora promissora e pulsante, transformou-se subitamente num limbo de almas em suspenso. Chegámos em agosto de 1975, exaustos, desorientados, carregando na bagagem apenas o essencial — e nas mãos, a memória do que já não poderíamos salvar. À nossa volta, viam-se centenas de outras famílias amontoadas em quartos improvisados, corredores de escolas, pátios de casas abandonadas; todas em busca de uma saída, todas à espera de um milagre.
Durante dezasseis dias, a cidade viveu sob o cerco do medo. O som das metralhadoras e o ribombar dos rockets tornaram-se a banda sonora das nossas noites. O ar estava saturado de pólvora e ansiedade. O futuro era uma incógnita dolorosa. Cada novo dia era uma vitória arrancada ao desespero, e cada noite, uma travessia de vigilância, oração e esperança.
A comida começou a escassear logo na primeira semana. As filas para o pão eram intermináveis, a água racionada, e a distribuição de víveres feita sob vigilância armada e sempre em clima de tensão. Os mais velhos resignavam-se, as mães protegiam os filhos com o pouco que restava, e as crianças aprendiam cedo demais que, mesmo a brincar, não deviam afastar-se da família nem do abrigo.
Foi nessa altura que o meu pai e o meu tio Herberto decidiram arriscar tudo. Olhando nos olhos um do outro, compreenderam que esperar já não era opção. Montaram-se no BMW negro do meu tio e voltaram à nossa terra natal, enfrentando estradas patrulhadas por milícias e barricadas. O regresso era um jogo de vida ou morte: a cada quilómetro, o perigo era real, o medo constante.
Na casa, já saqueada, encontraram a capoeira intacta — última fonte de alimento e esperança. Encheram o porta-bagagens com frangos vivos, símbolo de resistência e sobrevivência, e regressaram a Nova Lisboa, vencendo o destino com a força do desespero e do amor pela família.
Aqueles frangos, mais do que alimento, foram sustento para o corpo e para a alma: serviram para mitigar a fome, para partilhar com outros refugiados, e para manter viva a chama da esperança num tempo de trevas.
Todos os dias, colados ao rádio, aguardávamos ansiosamente que o nosso nome fosse chamado para o voo de evacuação. O tempo passava devagar, como se a cidade estivesse suspensa entre o antes e o depois — entre o que fomos e o que seríamos, caso sobrevivêssemos.
Nestes dezasseis dias, aprendemos o verdadeiro significado de resiliência, solidariedade e fé. Éramos estrangeiros na nossa própria terra, mas nunca deixámos de ser família, nunca deixámos de acreditar que, depois do limbo e da fome, seria possível recomeçar.
O Chamamento Final e o Legado
Ao décimo sexto dia em Nova Lisboa, o silêncio da noite foi finalmente interrompido por uma notícia que soou como milagre: o nosso nome foi lido na rádio. Era o sinal tão aguardado — a senha para a sobrevivência, a autorização para partir, a última esperança tornada real.
Naquela madrugada, a família preparou-se em silêncio, reunindo as poucas posses que restavam e guardando no coração o peso das ausências e das perdas. Cada objeto metido na mala — uma fotografia, uma peça de roupa, um caderno de escola, um pequeno brinquedo — era uma cápsula de memória e saudade. Caminhámos para o aeroporto com passos pesados, olhos marejados, despedindo-nos com o olhar de tudo o que tinha sido casa, infância e futuro por sonhar.
O ambiente no aeroporto era feito de murmúrios, lágrimas contidas, abraços apertados e olhares de despedida. Pais de família seguravam as mãos dos filhos com força redobrada, mães enxugavam lágrimas silenciosas, jovens tentavam esconder o medo e a incerteza por detrás de sorrisos tímidos.
No rosto de cada um, viam-se as marcas do sofrimento, mas também a chama de uma coragem silenciosa — a mesma que atravessara gerações e agora se renovava na travessia do desconhecido.
O embarque foi feito entre filas apressadas, documentos verificados à pressa, olhares para trás e promessas mudas: “Havemos de regressar um dia”, diziam muitos sem saberem que, para a maioria, o regresso nunca aconteceria. O avião levantou voo sobre uma Angola ferida, levando consigo homens, mulheres e crianças, todos exilados por imposição da História, todos transportando consigo a única riqueza que não se pode roubar: a memória.
Ao chegar ao destino — fosse Portugal ou qualquer outro ponto da diáspora — trazíamos gravadas na pele as cicatrizes do medo e do exílio, mas também a dignidade dos que não se vergam, a solidariedade dos que partilham, e a fé de quem acredita no recomeço.
O legado desta travessia não se mede apenas nas perdas, mas sobretudo nas lições deixadas:
— O valor da família acima de todas as adversidades
— A importância de nunca esquecer as raízes, mesmo em terra estranha
— A certeza de que a coragem e a esperança podem vencer até as noites mais longas
Saímos de Angola com as mãos vazias, mas com o coração repleto de histórias e de amor. E assim, entre lágrimas, promessas e lembranças, ficou plantada a semente do futuro — para que os nossos filhos e netos soubessem, um dia, o preço da liberdade, o peso da dignidade, e a força de quem nunca desiste de ser inteiro, mesmo no exílio.
Nota Pessoal de Reflexão e Agradecimento
Ao escrever estas memórias, revisito não só a dor e o medo, mas também a esperança, a coragem e a união que nos permitiram sobreviver e reconstruir. Agradeço a todos os que, com gestos grandes ou pequenos, ajudaram a minha família nestes dias sombrios. Aos meus pais, pelo exemplo inquebrantável de amor e entrega. Ao irmão e irmãs, pelo companheirismo silencioso. A todos os que cruzaram o nosso caminho, levando ou trazendo alento, fica a minha gratidão eterna.
Que estas palavras sirvam de homenagem a quem partiu, de alento a quem ficou, e de ponte para as gerações que herdam este legado. Não escrevo para alimentar rancor, mas para perpetuar a memória — e, nela, encontrar a verdadeira força para seguir em frente.
Soneto Camoniano: Herança de Fogo e Esperança
No rosto, o tempo inscreve o seu tormento,
Caminho de saudade e dor vivida,
A sombra da esperança perseguida,
Feroz silêncio, sangue e sofrimento.
No peito, a angústia — fogo e pensamento,
O grito “mamawê”, noite sangrenta sem guarida,
Infância condenada e despedida,
Família separada pelo vento.
Mas eis que o pai, erguido na coragem,
Desafia a morte, enfrenta o impossível,
Traz o pão e o calor — vence a viagem.
E no regresso, o olhar indizível:
Heróis que enfrentam treva e vassalagem,
Dão-nos lição de amor indestrutível.
“Partimos com as mãos vazias, mas levámos connosco tudo aquilo que nenhuma guerra pode destruir: a memória, o amor e a esperança.”
João Elmiro da Rocha Chaves
