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No Meu Tempo Não Havia Grades:

jan 5

3 min de leitura

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No Meu Tempo Não Havia Grades: Esta É a Minha História


Cresci num tempo que hoje parece um sonho distante. “No meu tempo não havia grades,” dizemos com saudade. E não havia mesmo. As janelas das casas, as portas de vidro das lojas e as montras estavam livres de barras metálicas. Não existiam guardas armados à entrada dos bancos ou dos centros comerciais. Caminhávamos pelas ruas sem medo, vivíamos num mundo onde o respeito mútuo e a confiança eram os alicerces da sociedade. Era uma vida simples, segura, e cheia de esperança.


Nasci em Angola, e as minhas memórias mais preciosas estão ligadas a Santa Comba e Cela. Naqueles tempos, a vida era tranquila e as oportunidades pareciam infinitas. Íamos à escola sem preocupações, assistíamos a filmes no cinema, a jogos de futebol, ralis de carros, corridas de motas e karting. O desporto unia-nos, assim como as festas da nossa comunidade, especialmente as Festas do Divino Espírito Santo. Estas festas, que muitos ainda celebram na Califórnia, eram um momento de união e partilha, uma tradição que nos enchia de orgulho e que simbolizava a generosidade e a fé da nossa gente.


Na Cela, onde o sol brilhava forte e a terra era fértil, respirava-se um ar de paz. Os vastos campos de milho, as plantações de ananás e as muitas explorações leiteiras marcavam a paisagem. Os agricultores da região orgulhavam-se em fornecer leite fresco à ELA (Empresa de Laticínios de Angola), um testemunho do trabalho árduo e da prosperidade local. Santa Comba, com o seu ambiente sereno, era uma terra onde nos sentíamos seguros, onde o crime era praticamente inexistente. Raramente se lia uma notícia de violência ou de algum ato criminoso nas cidades. Era um contraste impressionante, porque no norte do país, a guerra e o terrorismo já faziam parte da realidade diária. No entanto, para nós, no sul, a vida seguia em paz.


Os comandos do exército português enfrentavam as ameaças do terrorismo e da Guerra Fria no norte, mas para mim, na minha infância, isso parecia um mundo à parte. A guerra nunca chegou a tocar diretamente a minha vida naqueles anos dourados. Sentíamo-nos seguros, livres, e cheios de sonhos. Não havia medo ao caminhar pelas ruas nem ao reunir-nos para celebrar as nossas tradições.


Mas tudo isso mudou. Quando o conflito chegou às nossas cidades, trouxe consigo o fim de uma era. A desconfiança e o medo instalaram-se. Muitos, incluindo eu e a minha família, fomos forçados a partir. O que deixámos para trás não foi apenas um lugar, mas um modo de vida. Ao regressar anos depois, o choque foi inevitável: grades nas janelas, guardas armados nas portas dos bancos e casas comerciais, um sentimento de insegurança que nunca tinha conhecido no meu tempo.


A Angústia do Presente e a Esperança no Futuro

É difícil aceitar que o paraíso da minha infância tenha sido destruído. O que mais dói não é apenas o que se perdeu, mas o que se transformou. Aquele sentimento de segurança e respeito que definia as nossas comunidades foi substituído por medo e desconfiança. Hoje, tudo está cercado por grades, como se vivêssemos numa prisão invisível.


Mas recuso-me a acreditar que isso seja definitivo. Acredito que o que foi bom pode voltar. Tudo o que tínhamos – a paz, o respeito, a confiança – não se perdeu completamente. Vive nas nossas memórias, nas nossas tradições, e no espírito resiliente do nosso povo. Só precisamos de força de vontade e de sacrifício para reconstruir esse mundo.


Um Apelo ao Meu Povo

Aos meus compatriotas, digo-vos isto: o que perdemos não está além do nosso alcance. Podemos reconstruir a Angola de que nos lembramos, uma Angola onde as grades não são necessárias, onde as pessoas se respeitam, e onde as crianças podem crescer em segurança e liberdade. Isso exigirá coragem, união, e a determinação de rejeitar o medo e o ódio que hoje nos dividem.


Recordem a Cela e Santa Comba, a paz que ali vivemos e a força das nossas tradições. Pensem nas Festas do Divino Espírito Santo, que ainda hoje simbolizam a partilha e a generosidade. Essas são as chaves para o nosso futuro: a união, o respeito, e o compromisso com o bem comum.


A Angola do meu tempo pode parecer um sonho, mas acredito que pode voltar a ser uma realidade. Com esforço, sacrifício, e a vontade de reconstruir, podemos criar um futuro onde as grades sejam desnecessárias e onde o respeito e a segurança voltem a definir as nossas comunidades.


Este é o meu apelo, baseado na minha história. Que possamos juntos recuperar o paraíso que já foi nosso e garantir que as próximas gerações possam viver com a mesma liberdade e alegria que um dia conhecemos.


















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Comentários (1)

Fernando
02 de fev.

Eu era de Nova Lisboa, mas conheci Santa Comba Dão quando era muito jovem, quando lá passei duas semanas de férias. Na altura o meu tio era o gerente da Robert Hudson na Cela, telvez tivesse conhecido. Chamava-se Augusto Simões. Nunca me esqueço dele me ter levado a uma plantação de ananás, a perder-se de vista no horizonte. Gostei muito deste texto e das fotos.

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