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Santa Comba: O Verão de 1975 e o Fim da Infância
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O Verão de 1975
O verão de 1975 começou como tantos outros em Santa Comba. O sol subia inteiro sobre as montanhas do Kwanza Sul e batia na encosta do Morro Waku como um sino de luz. A cidade mantinha o seu compasso. O comércio abria cedo, as escolas ainda tinham cadernos por fechar, e os vizinhos conversavam de porta entreaberta. Era um ritmo antigo. Quase confortável.
A minha vida girava entre a escola e a mercearia do meu pai. Eu sabia onde estavam as latas de conserva, o açúcar e o arroz empilhado ao milímetro. Conhecia o som das moedas no balcão e o arrastar das caixas de madeira no chão. O cheiro de café fresco misturava-se com o pó fino das prateleiras. Era uma rotina simples, que parecia prometer um futuro.
Ao mesmo tempo, chegavam notícias de Luanda e do Norte. Primeiro, como rumores; depois, como relatos mais diretos. Vozes baixas no mercado. Silêncios rápidos entre uma compra e outra. A normalidade continuava, mas com fissuras que apenas os atentos percebiam. Eu via. E não dizia muito. Guardava tudo por dentro.
No dia 5 de agosto de 1975, a aparência de normalidade ganhou um brilho de esperança. Foi emitido o meu diploma escolar. Um papel oficial, com assinaturas firmes e selos que carimbavam anos de estudo. Na mesma data, o meu pai obteve na Administração local o atestado de emigração. Outra folha com letras sérias e carimbos fiscais. Dois documentos. Dois atos simples na secretária de alguém. Para nós, significavam muito mais.
Hoje, quando toco nesses papéis, ainda sinto a textura do papel. Penso na mão que os assinou. Penso na pressa contida no olhar de quem os passou. Naquele dia, acreditámos num futuro possível. Acreditámos que a vida iria continuar na sua cadência. Acreditámos porque queríamos acreditar.
O dia seguinte provou o contrário. Mostrou que aqueles papéis não eram apenas burocracia. Eram a prova de que a infância estava a terminar. Eram escudos contra o esquecimento. Eram bilhetes de sobrevivência.
Soldados Estrangeiros no Quintal
A guerra chegou primeiro em silêncio. Não foi com tiros nem explosões. Foi com homens armados a entrar na nossa rotina como se fossem clientes normais. Eram soldados da FNLA, vindos do Zaire, e falavam apenas francês. Eu atendi muitos deles no balcão da mercearia do meu pai. Pediam arroz, enlatados e óleo. Pagavam. Mas não havia calor humano nos gestos. Havia distância. Eram estrangeiros na nossa terra.
Lembro-me do desconforto de os ver com as armas às costas, os uniformes mal adaptados à poeira de Santa Comba. O barulho metálico das espingardas batia contra o chão de cimento, lembrando-nos a cada instante que não eram homens comuns em busca de comida. Eram soldados. E traziam consigo uma guerra que ainda não tinha explodido, mas que já se sentia no ar.
Poucos dias antes do ataque, o sinal mais claro apareceu. Os comandantes da FNLA reuniram-se no quintal da nossa casa. O sol batia no chão seco e o pó levantava-se sob os seus passos pesados. Falaram com o meu pai em tom de confiança. Garantiram-lhe que o ataque à Delegação do MPLA seria rápido, fácil e vitorioso. Disseram-lhe que não havia perigo para nós. Que não precisávamos de nos preocupar.
O meu pai, homem de palavra e de fé nos compromissos, quis acreditar. Talvez aquela promessa lhe desse paz numa altura em que o medo rondava todos os vizinhos. Mas eu, ainda rapaz, já desconfiava. Os olhos daqueles homens não traziam segurança. Traziam cálculo. E eu sabia, pelo movimento das ruas e pelos rumores que corriam, que a calma aparente não iria durar.
O quintal da nossa casa, onde tantas vezes tínhamos partilhado refeições, conversas e brincadeiras de infância, transformou-se, naquele instante, em palco de conspiração. E embora as palavras fossem tranquilizadoras, o silêncio entre elas revelava outra verdade: estávamos a um passo do abismo.
Crianças-Soldado e a Coragem de uma Mãe
Enquanto os homens da FNLA traziam o peso estrangeiro do Zaire para as nossas ruas, o MPLA punha adolescentes a marchar como soldados. Vi-os tantas vezes passar em frente à mercearia, com as metralhadoras penduradas nos ombros frágeis. Tinham doze, treze anos, talvez um pouco mais alguns deles. Os olhos ainda de criança, mas já treinados para endurecer o olhar. Passavam em formação, tentando imitar a disciplina dos adultos, o passo firme, o queixo erguido. Mas era impossível não ver que eram meninos arrancados ao direito de brincar.
O som metálico das armas deles ecoava nas pedras da rua. Cada passo deixava claro que o futuro lhes tinha sido roubado. Naqueles dias, nós, que ainda tentávamos viver uma rotina, aprendemos a conviver com esta imagem absurda: crianças armadas a vigiar outras crianças.
Poucos dias antes do ataque, vi a cena que nunca mais consegui apagar da memória. O meu primo Beto, que trabalhava na loja de ferragens do meu tio, cometeu um gesto simples mas perigoso. Retirou alguns panfletos do MPLA que cobriam as montras. Nada mais do que isso. Mas nesse tempo, um gesto pequeno podia ser tratado como uma ofensa imperdoável.
A patrulha de jovens soldados não hesitou. Cercaram-no, prenderam-no e levaram-no pelas ruas em direção à Delegação do MPLA, a poucos metros da nossa casa. Eu estava à porta da mercearia e vi quando passavam. Foi nesse instante que a minha mãe, num impulso maior do que qualquer medo, correu para a rua e lançou-se sobre o sobrinho. Agarrou-o com todas as forças, puxando-o contra si como se pudesse arrancá-lo do destino.
A tensão partiu o ar em segundos. Os rapazes gritaram, tentaram afastá-la. Um deles ergueu a metralhadora e encostou-lhe o cano frio ao peito. Apontaram-na para matar. Eu vi o olhar dela, cheio de coragem e desespero. Não recuou logo. Resistiu até onde pôde. Mas acabou por ser arrancada com violência dos braços do sobrinho, ameaçada de morte ali mesmo, no meio da rua.
O Beto foi levado para dentro da sede improvisada, onde ficaria preso durante algumas horas. Acabou por ser libertado, mas aquele momento revelou-nos uma verdade nua: em Santa Comba já não havia inocentes. As mães podiam ser tratadas como inimigas. Os meninos eram transformados em soldados. E nós, família, éramos forçados a aprender o peso da impotência.
O Inferno do 6 de Agosto
Na madrugada de 6 de agosto de 1975, Santa Comba deixou de ser vila e transformou-se em campo de batalha. O primeiro sinal não foi a luz do sol, mas o som seco e repetido das metralhadoras a cortar o silêncio da noite. Já não eram rumores vindos do Norte. Agora era ali, à distância de poucos passos, atrás da nossa casa.
A Delegação do MPLA, improvisada sede militar, tornou-se o alvo imediato. Os soldados da FNLA, vindos do Zaire, avançaram pela porta da frente. Entre eles surgiu um homem com um lança-chamas. Vi a chama acender-se e devorar a entrada. Em segundos, o ar encheu-se de fumo espesso, cheiro a madeira queimada e pólvora fresca. Era sufocante. Cada inspiração queimava a garganta e ardia no peito como fogo invisível.
Lá dentro estavam os jovens soldados do MPLA, meninos de doze ou treze anos com armas demasiado pesadas para os seus ombros. Encurralados, tentavam escapar pela lateral. Pela janela vi-os saltar. Os olhos arregalados, os rostos cobertos de suor e pó, o corpo em pânico. Cada um trazia a metralhadora presa ao ombro, como se não soubessem se deviam largá-la ou agarrar-se a ela para não cair.
E enquanto se lançavam para o pátio, ouvi o grito. Alto. Desesperado. Repetido. “Mama woé, mama woé” — mãe, em língua bantu. Era um clamor infantil, arrancado da alma, que atravessava o fumo e se confundia com o barulho das rajadas.
Vi alguns caírem feridos, outros mortos no pó. O som dos corpos a bater no chão misturava-se com o eco dos disparos. O grito deles nunca mais saiu da minha cabeça. Até hoje, quando fecho os olhos, ainda oiço aquele “Mama woé” a vibrar no silêncio da noite.
Para mim, aquele momento foi o fim definitivo da infância. A guerra deixou de ser notícia, deixou de ser conversa de adultos. Tornou-se realidade diante dos meus olhos, gravada em carne e sangue.
Aquelas crianças não pediam só socorro. Pediam uma vida que lhes tinha sido roubada. Tornaram-se o retrato de uma geração sacrificada, usada como escudo humano por forças que não compreendiam. E eu, ao vê-los morrer, percebi que a minha própria infância tinha terminado ali, no pátio de uma casa em chamas.
Carregar o Camião sob Balas
Por volta das duas da tarde, depois de horas de fogo cruzado, percebi que já não havia tempo a perder. A cada disparo, a cada rajada que ecoava pelas ruas, sentia que estávamos encurralados. O meu pai, ainda apegado à promessa dos comandantes da FNLA de que nada nos aconteceria, insistia em esperar. Dizia que iria acalmar. Que seria passageiro. Eu não conseguia acreditar.
Naquela manhã, tinham passado famílias vindas do Norte, em carros carregados com colchões, malas e crianças agarradas ao colo. O pó das estradas marcava-lhes o rosto. Os olhos, secos de tanto chorar, revelavam desespero. A pressa com que atravessavam Santa Comba dizia-me tudo: o que tínhamos visto ainda não era o pior. O pior vinha a caminho.
Com essa certeza, decidi agir. Fui buscar o camião do meu pai e recuei-o até à porta da cozinha. O motor roncava alto, quase a competir com os tiros, mas era o som da nossa única esperança. Juntei-me ao meu irmão e começámos a carregar apressadamente as malas, roupas, documentos e algum alimento. Cada objeto parecia pesar toneladas. O suor escorria pelo rosto, misturado com o pó que entrava pelos olhos.
De repente, o som cortante. Balas a zumbir por cima das nossas cabeças. Passavam tão perto que pareciam assobiar no ar. Instintivamente encolhíamo-nos, mas não parámos. O coração batia descompassado, o corpo tremia, mas continuávamos a carregar o que fosse possível. Era como se cada disparo fosse um aviso: não tinham mentido, estávamos em perigo real.
Às três e meia da tarde, depois de discussões e súplicas, conseguimos convencer o meu pai. O olhar dele, pesado, encontrou o nosso. Percebeu que não havia outra escolha. Subimos todos ao camião. O silêncio dentro do veículo era tão denso quanto a fumaça lá fora.
Seguimos para o Aldeamento Seis, onde a restante família nos esperava em aflição. O reencontro foi rápido, não houve tempo para lágrimas ou abraços demorados. Juntámo-nos ao comboio de viaturas que se organizava para partir. Não pela estrada principal, mas por caminhos secundários, tentando escapar ao fogo cruzado.
Cada curva era um risco. Cada sombra na estrada parecia esconder uma emboscada. O barulho dos pneus a roçar na terra batida misturava-se com o ranger dos travões, com o soluçar contido de quem via a sua vida inteira ficar para trás.
O destino era o Huambo, onde nos abrigámos até conseguir lugar num avião. Duas semanas depois, embarcámos num voo da TWA para Lisboa. Foi assim que começou o exílio: com a certeza de que tínhamos salvo a vida, mas deixado atrás a nossa terra, os nossos vizinhos e os nossos mortos.
Epílogo: Silêncio Depois do Fogo
Quando deixámos Santa Comba para trás, não foi apenas a fuga de uma cidade. Foi o fim de um ciclo inteiro de vida. Cada metro percorrido naquele camião foi uma despedida não dita: da escola onde estudei, da mercearia onde aprendi a servir os clientes, do quintal onde cresci a ouvir promessas que não se cumpriram. Ficou tudo para trás, como se tivesse sido apagado a sangue e fogo.
O que me acompanha até hoje não são apenas imagens, mas também cheiros e sons. O fumo que queimava os pulmões. O estalido das metralhadoras a cortar o ar. O eco lancinante das crianças a gritar “Mama woé” enquanto saltavam pelas janelas em chamas. Esses gritos não pertencem apenas à minha memória. Pertencem à história de uma geração sacrificada.
No Huambo, e mais tarde em Lisboa, seguimos em frente porque não havia alternativa. Mas nunca mais voltámos a ser os mesmos. Santa Comba, o Kwanza Sul, o Morro Waku, tudo ficou preso dentro de nós, misturado com dor, saudade e uma certeza amarga: a terra que foi nossa desapareceu sob os pés de quem lá ficou.
Não escrevo estas palavras por vingança. Escrevo por verdade. Porque a história não pode ser contada apenas pelos comunicados oficiais ou pelos discursos de quem sobreviveu no poder. Tem de ser contada também por quem chorou, por quem fugiu, por quem perdeu tudo e sobreviveu para dar testemunho.
O meu dever é lembrar. Lembrar o olhar da minha mãe com uma metralhadora apontada ao peito. Lembrar o meu primo Beto arrastado pelas ruas. Lembrar os meninos-soldado que tombaram a chamar pelas suas mães. Lembrar o silêncio pesado dentro do camião que nos levou para o exílio.
Que estas palavras fiquem como memória e como aviso. Para que nunca se esqueça o que aconteceu em Santa Comba no dia 6 de agosto de 1975. E para que as gerações futuras saibam que a guerra não é feita de estatísticas nem de slogans. É feita de pessoas de carne e osso. Pessoas como aquelas crianças que tombaram a gritar “Mama woé”.
Santa Comba, 6 de Agosto de 1975: o dia em que a minha infância acabou
Naquele dia, 6 de agosto de 1975, Santa Comba deixou de ser a minha infância e tornou-se um campo de batalha.
O fumo, o som das metralhadoras e o grito de crianças a chamar “Mama woé” ficaram para sempre dentro de mim.
Não escrevo por vingança, mas por memória.
Porque a história precisa de ser contada também por quem chorou, sentiu na pele, fugiu e sobreviveu.
Soneto: Mama woé
Na madrugada o fogo se acendia,
e o grito infantil cortava o vento,
da mãe distante o último lamento,
na terra ardia a infância que morria.
Saltavam meninos, sombra fugidia,
com arma ao ombro e olhar em sofrimento,
caíam no pó sem mais alento,
trazendo no peito a dor que não se esfria.
Oiço ainda a voz no eco do tormento,
“Mama woé”, clamavam contra o nada,
o céu fechava o chão em cinza fria.
E eu, perdido, guardo esse momento,
ferida aberta, lágrima calada,
que nunca a vida inteira cicatriza.
Documentos que Falam
No meio de tanto fogo e perda, duas folhas frágeis atravessaram o tempo e sobreviveram. Hoje guardo-as como se fossem relíquias. Não são apenas papéis carimbados. São testemunhas de um destino traçado na véspera da guerra.
O primeiro é o meu diploma escolar, emitido a 5 de agosto de 1975, certificando a conclusão dos meus estudos na Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo. Um dia depois, a infância terminou em pólvora e sangue.
O segundo é o atestado de emigração, também datado de 5 de agosto de 1975, passado pela Administração de Santa Comba, autorizando a minha saída para os Estados Unidos. Esse documento tornou-se o bilhete de sobrevivência para mim e para a minha família.
São papéis frágeis, marcados pelo tempo, mas dizem mais do que muitas páginas de livros. São a prova de que a história não é apenas feita de discursos, mas também de carimbos, assinaturas e datas que mudam para sempre a vida de quem as recebe.
📜 Diploma Escolar, 5 de agosto de 1975
Escrito na véspera do incêndio da infância, prova de um futuro sonhado que a guerra calou.

Emitido pela Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo em Santa Comba, certifica a conclusão dos meus estudos no dia anterior ao ataque. Símbolo de uma juventude interrompida pela guerra.
📜 Atestado de Emigração (5 de agosto de 1975)
Papel frágil que se tornou bilhete de vida, autorização selada antes da fuga sob fogo cruzado.

Passado pela Administração do Concelho de Santa Comba, autoriza a minha saída para os Estados Unidos. Documento que se tornou passaporte para a sobrevivência da minha família.
Dois papéis sobreviveram ao caos. Dois papéis frágeis, assinados e carimbados na véspera, tornaram-se a prova de que a história não se escreve apenas com tiros e chamas, mas também com linhas de tinta sobre folhas amareladas. Foram eles que nos permitiram atravessar a fronteira invisível entre a vida e a morte.
O diploma representa a juventude interrompida. Era a promessa de um futuro académico e profissional que se dissolveu em horas, quando a guerra engoliu Santa Comba e nos obrigou a trocar cadernos por malas apressadas.
O atestado de emigração é diferente. Não fala de sonhos, fala de sobrevivência. Foi o passaporte que transformou a fuga em caminho possível. Nele estava a autorização que permitiu que uma família inteira escapasse do fogo cruzado.
Mas nenhum papel, por mais valioso que seja, consegue apagar o que vi e ouvi naquela manhã. Nenhum carimbo silencia o grito de crianças a chamar pela mãe. Nenhuma assinatura limpa o cheiro de pólvora que ficou colado à pele. Nenhum selo fiscal devolve a inocência roubada.
Esses documentos permanecem comigo, guardados como relíquias. Não apenas porque me salvaram, mas porque são testemunhas silenciosas de uma verdade que não pode ser negada. São o elo entre a memória pessoal e a história coletiva. São a ponte entre o passado vivido e o futuro que ainda precisa de aprender com essa dor.
E quando os mostro hoje, não é para falar de mim. É para lembrar os que ficaram. Os que não tiveram tempo de fugir. Os que tombaram na terra quente do Kwanza Sul. Porque a história de Santa Comba não é apenas a minha. É a história de todos nós que vimos o fogo devorar a infância num único dia de agosto.
Quero agradecer-lhe, leitor, por ter caminhado comigo através destas memórias. Sei que não são fáceis de ler, tal como não são fáceis de reviver. Cada palavra aqui escrita nasceu da dor, mas também da necessidade de partilhar a verdade. O simples gesto de me acompanhar nesta travessia significa que a minha dor não ecoa sozinha. Significa que aqueles gritos, aqueles rostos e aquela terra não foram esquecidos.
Obrigado por ter dado o seu tempo e o seu coração para sentir comigo o peso da história.






