Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

Raízes Silenciadas: O Dia em que Fomos Forçados a Partir
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Introdução
Este livro nasce do silêncio. Do silêncio pesado que desceu sobre nós em 1975, quando a vida se tornou pressa e o tempo da infância foi interrompido por malas improvisadas e despedidas apressadas. Nas ruas da Cela e de tantas outras terras de Angola, a normalidade dissolveu-se de um dia para o outro. Aquilo que parecia eterno, a loja aberta de manhã, os campos cultivados, os sinos da igreja de Nossa Senhora da Assunção na encosta do morro Waku, transformou-se em memória.
Mas a memória não obedece a fronteiras. A memória é mais forte do que decretos e mais resistente do que os mapas que se redesenham pela mão da política. Onde há lembrança, há pátria. Onde há dor partilhada, há comunidade. Escrevo, portanto, para fixar no papel aquilo que nenhuma força conseguiu arrancar: a verdade vivida por uma geração que foi forçada a partir.
Não escrevo apenas por mim. Escrevo pelos que saíram em silêncio e pelos que ficaram sem voz. Pelos que regressaram em cinzas, pelos que jamais voltaram, pelos que mesmo longe mantêm Angola viva no coração. Este é um testemunho que se entrelaça com muitos outros, testemunhos de amigos de infância, de vizinhos, de companheiros de escola, de todos os que também foram levados pelo turbilhão da história. É um mosaico de memórias, não para romantizar a perda, mas para dignificá-la.
Este livro é também um gesto de resistência ética. Não se trata de alimentar rancores nem de procurar culpados fáceis. A história já nos ensinou que a amargura perpetua prisões invisíveis. Aqui a intenção é outra: resgatar a verdade sem ódio, iluminar o que foi silenciado e oferecer um espaço de reflexão. A memória só se torna pátria quando se transforma em partilha, quando deixa de ser ferida privada e passa a ser herança coletiva.
A travessia que se segue não é linear.Conduzir-vos-ei pelos caminhos da infância interrompida, pelas paisagens férteis de Angola nos anos anteriores à independência, pelos dias da fuga e do exílio, pela vida reconstituída em terras distantes e finalmente pelo retorno através da palavra. Cada capítulo é uma estação desta viagem, por vezes lírica, por vezes histórica, sempre fiel àquilo que vi, vivi e recolhi.
Este livro é, sobretudo, uma ponte. Entre Angola e a diáspora, entre o passado e o futuro, entre o que se perdeu e o que ainda pode florescer. É um convite para todos aqueles que sabem que a identidade é feita de camadas e que a pertença não se mede em bandeiras, mas em raízes e afetos.
Ao abrir estas páginas, que o leitor se prepare para atravessar um território onde o pessoal se torna universal e onde a memória individual se converte em pátria partilhada. Porque no fim este livro é mais do que uma história: é um ato de amor à verdade, um ato de fidelidade à memória e um ato de esperança para as gerações que virão.
Nota Editorial
Escrevo estas páginas com a consciência de que nenhuma memória é apenas individual. O que aqui partilho é o reflexo de uma geração inteira que viveu a abundância e a dor, a esperança e a ruptura. A história de 1975 marcou-nos profundamente, mas não nos definiu apenas como vítimas. Tornou-nos também guardiões de uma herança que, se não for contada, corre o risco de se perder no esquecimento.
Este livro não é um julgamento, é um testemunho. É também um tributo à dignidade daqueles que, mesmo em meio ao exílio, mantiveram viva a chama de Angola dentro de si. Através da escrita, busco reconciliar passado e presente, não para apagar feridas, mas para lhes dar o valor de cicatrizes que contam quem somos.
Convido o leitor a entrar nestas páginas com abertura de espírito e com o coração disponível para escutar. Talvez descubra aqui fragmentos da sua própria história ou reconheça ecos de outras diásporas e exílios. Se assim for, que este livro cumpra a sua missão: transformar a memória em pátria partilhada e a dor em legado de esperança.
João Elmiro da Rocha Chaves, Miro da Cela
📖 Índice
Nota Editorial
Introdução
Capítulo 1 — A Cela como Centro do Mundo
• A loja do meu pai e o coração da comunidade
• O mercado e as vozes que se cruzavam
• O Guardião da Família e a Travessia para Angola
Capítulo 2 — Angola em Ascensão
• Caminhos-de-ferro, fábricas e modernidade
• O quotidiano escolar e os amigos da infância
• Angola como terra de futuro
• A Empresa de Laticínios de Angola (ELA)
• Soneto da Lágrima que Guarda a Terra
Capítulo 3 — O Tejo em Sonho e o Morro Waku em Fé
• A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção
• A Capela de São Cristóvão no Morro Waku
• A Igreja de Sé Nova no Aldeamento Nove
• As Festas do Espírito Santo no Colonato da Cela
• Soneto da Fé que Une Céu e Terra
Capítulo 4 — O Legado de Uma Vida: Contribuições e Reflexões
• A Família como Primeiro Legado
• A Profissão como Espaço de Construção
• O Serviço à Comunidade como Chamamento
• Soneto do Legado
Capítulo 5 — Raízes em Terra Estrangeira: Construção e Pertencimento
• A Adaptação ao Exílio
• A Afirmação Profissional
• O Contributo Comunitário
• Soneto do Exílio Transfigurado
Capítulo 6 — Entre Circuitos e Memórias
• A Construção na Micron
• A Fundação da Equipa de SSD
• A Criação das Normas de Trabalho
• Soneto Entre Circuitos e Memórias
Capítulo 7 — A Xitaka em Idaho
• O Regresso Simbólico à Terra
• A Sombra da Árvore e o Renascimento das Raízes
• Soneto da Sombra e da Herança
Capítulo 8 — Família e Legado
• Judy como Pilar
• Os Filhos como Continuidade
• Mason como Herança Viva
• Soneto da Pátria do Coração
Capítulo 9 — O Blog como Pátria Literária
• ElmiroChaves.com como Arquivo Vivo
• Voz Própria, Testemunhos Partilhados
• Soneto da Palavra como pátria
Capítulo 10 — Raízes Silenciadas
• A Série de Memórias como Resgate Coletivo
• Ética da Memória: Contar sem Odiar
Capítulo 11 — Entre a Cela e o Futuro
• Angola que Sonhámos
• Angola que Pode Vir
• Soneto da Angola Sonhada e Por Vir
Coda — Soneto Final
"A memória torna-se pátria, e o coração, exílio."
Capítulo 1 — A Cela como Centro do Mundo
A loja do meu pai e o coração da comunidade
A vida na Cela tinha o seu eixo num espaço simples mas vital: a loja do meu pai. João de Deus Chaves não vendia apenas arroz, farinha, açúcar e tecidos; vendia também confiança. A cada cliente que entrava, oferecia não só mercadorias, mas palavras, conselhos, e até um lugar de escuta. A loja era o ponto onde se encontravam agricultores, camionistas, professores e curiosos. Havia sempre um rumor de histórias que se misturavam com o tilintar das moedas e o arrastar das sacas de milho.
Era ali que eu aprendia, sem perceber na altura, que a economia de uma terra é também a sua alma. As transações eram feitas com rigor, mas muitas vezes também com humanidade: havia quem comprasse fiado, e o caderno de notas do meu pai guardava não apenas dívidas, mas uma confiança silenciosa que fazia girar a comunidade.
O mercado e as vozes que se cruzavam
A Cela era um mosaico de vozes. No mercado, ainda sinto o cheiro do peixe seco, das frutas tropicais empilhadas em cestos de verga, da mandioca moída que se espalhava no ar. Mulheres com panos coloridos equilibravam tabuleiros na cabeça, homens ofereciam produtos agrícolas, crianças corriam entre as bancas.
O português era língua franca, mas o umbundu e o kimbundu misturavam-se como música de fundo. Não havia fronteiras entre sons: cada voz carregava a sua história, e juntas compunham uma sinfonia de pertença. Era nesse caldeirão de línguas e aromas que aprendi que identidade é sempre plural.
O Guardião da Família e a Travessia para Angola
O meu avô, João da Rocha Machado Salvador, foi a âncora da nossa família e o arquiteto silencioso de um destino maior. Nascido na ilha Terceira, nos Açores, distinguiu-se desde cedo pela sua inteligência prática e pela sua presença elegante. Trabalhou como guarda-livros e gerente de loja, funções que exigiam rigor, responsabilidade e uma mente organizada. Era respeitado pela comunidade não apenas pelas suas competências profissionais, mas pela forma como conduzia a vida: com firmeza, visão e uma serenidade que inspirava confiança.
Havia nele uma sofisticação natural, um je ne sais quoi que impunha respeito. Era um homem com livros na cabeça e música no coração. O saxofone soprano era a sua extensão invisível, e quando tocava parecia que cada nota transportava a família e os vizinhos para além das limitações da rotina. Tocava como os grandes músicos, com paixão e destreza, e cada melodia era uma celebração da vida. Quem o via de chapéu elegante, sorriso aberto e instrumento em mãos sabia que estava diante de alguém que unia trabalho, fé e beleza numa só existência.
Essa postura fez dele mais do que patriarca. Foi um visionário. Com coragem, decidiu vender toda a herança que possuía nos Açores. Não foi escolha fácil, mas foi escolha convicta. Via em Angola uma terra de oportunidades, fértil em recursos e promessas de futuro. Apostou o capital da sua vida em Santa Comba, na Cela, investindo em prédios e património que se tornaram parte do coração da comunidade.
As fotografias que guardamos desse tempo revelam a solidez dessa decisão. Numa delas, a família Salvador reunida em Terceira, pouco antes da partida. O olhar da minha mãe, Vivelina, então a segunda mais nova, carregava tanto a inocência da infância como a expectativa de um novo mundo. Não era apenas uma travessia física; era a mudança de um destino inteiro.
Quando deixaram os Açores rumo a Angola, não levavam apenas malas. Levavam um legado de disciplina, música, fé e coragem. Levavam também a presença firme do meu avô João, que com a sua inteligência, a sua elegância e a sua visão marcou a vida de todos nós.
Ainda hoje sinto que ele me acompanha como guardião. Sinto-o nas minhas conquistas, como naquela vez em que representei João Batista numa peça de escola e vi o orgulho nos seus olhos. Sinto-o também no presente, como se continuasse a guiar-me, lembrando-me de que a memória é pátria e que o coração pode ser exílio, mas nunca deixa de guardar a sua música.


Capítulo 2 — Angola em Ascensão

Angola, no início da década de 1970, era uma terra de abundância e de promessas. O país figurava entre os grandes produtores mundiais de café, e a qualidade do grão angolano era reconhecida em mercados internacionais exigentes. O sisal crescia em extensas plantações, o algodão abastecia fábricas e exportações, e o gado bovino multiplicava-se em fazendas que abasteciam não apenas o mercado interno, mas também os países vizinhos. Era como se a própria terra respirasse prosperidade.
No planalto do Waku Kungo, essa riqueza era visível em cada detalhe. As plantações estendiam-se até perder de vista, os silos de cereais erguiam-se como torres de modernidade, e os camiões carregados de sacos de milho e algodão riscavam as estradas de terra batida, levantando nuvens de poeira que se tornavam parte da paisagem. Para nós, crianças, aquilo era apenas cenário de brincadeira. Para os adultos, era a prova de que o futuro parecia sólido, quase inabalável.
Caminhos-de-ferro, fábricas e modernidade
O Caminho-de-Ferro de Benguela era o símbolo maior desse progresso. Ligava as minas do interior e os campos agrícolas ao porto de Lobito, abrindo Angola ao mundo. Era um feito de engenharia que orgulhava colonos e locais, um testemunho de que o território não era apenas fértil, mas também estratégico.

Nas cidades e vilas, a modernidade insinuava-se em fábricas de têxteis, cervejarias, oficinas e moinhos. Havia rádios que traziam o mundo para dentro das casas, bicicletas que cruzavam ruas poeirentas, e até televisores raros que reuniam vizinhos curiosos em serões inesquecíveis. Angola era jovem, vibrante e prometia um futuro de progresso.

O quotidiano escolar e os amigos da infância
No meio dessa atmosfera de crescimento, a escola era o lugar onde os sonhos se organizavam em letras e números. O quadro negro transformava-se em portal para mundos distantes. Aprendíamos a desenhar mapas e a conjugar verbos que nos levavam da Cela a Lisboa, de Lisboa ao mundo inteiro.
Os amigos eram mais do que companheiros de sala; eram cúmplices de uma infância que ainda hoje vive na memória. Humberto Filipe Figueiredo, Joaquim Vicente Piteira, Pedro Carvalho, Saul Paradela, José Esteves Pereira e José Luís Sales Palhares Delgado eram parte da minha constelação diária. Partilhávamos o pão com goiabada nos intervalos, as partidas de futebol improvisadas e até as pequenas discussões que logo cediam lugar à reconciliação. Havia entre nós a leveza da infância, mas também a intuição de que o futuro traria mudanças maiores do que podíamos imaginar.

Angola como terra de futuro
Para muitos adultos, Angola não era apenas o presente, mas um horizonte aberto. Era vista como terra de oportunidades, onde o trabalho se transformava em prosperidade e onde famílias inteiras acreditavam que poderiam construir um destino melhor. Essa convicção estava presente no coração do meu avô João, que investiu tudo na Cela, e também no de muitos outros que apostaram as suas vidas nesse território vibrante.
Era uma época de confiança e de energia. Parecia que o país estava prestes a florescer em plenitude, como se nada pudesse interromper o seu curso natural. E no entanto, nós não sabíamos que a abundância de então estava prestes a ser atravessada por uma ruptura que mudaria tudo.
A Empresa de Laticínios de Angola (ELA): orgulho do Colonato da Cela
No coração do Colonato da Cela erguia-se a ELA — Empresa de Laticínios de Angola, uma das joias da modernização agrícola angolana. Mais do que uma fábrica, era símbolo de progresso, de organização e de visão para o futuro.
A ELA transformava o leite recolhido nas fazendas circundantes em manteiga, queijo, iogurte e leite engarrafado que abasteciam não apenas a região, mas também centros urbanos maiores. Para muitos, ver os caminhões frigoríficos da ELA percorrendo as estradas era testemunho de que Angola podia ser autossuficiente, capaz de competir em qualidade com os melhores produtos do mundo.
A inauguração da unidade foi celebrada com cerimónia solene e contou com a presença de autoridades locais e religiosas, um momento que ficou gravado na memória coletiva. Dentro das suas instalações, trabalhadores especializados operavam máquinas modernas que enchiam garrafas, prensavam queijos e embalavam produtos. O cheiro do leite fresco misturado com o vapor das caldeiras era parte da paisagem sensorial da Cela.
Para a comunidade, a ELA era motivo de orgulho. Representava empregos, inovação tecnológica e a certeza de que o trabalho conjunto podia gerar abundância. Era também reflexo de uma Angola em ascensão, capaz de transformar os frutos da terra em riqueza palpável.





Soneto da Lágrima que Guarda a Terra
Surge uma lágrima, pura, em meu olhar,
reflexo vivo de um passado inteiro,
memória acesa, fogo verdadeiro,
que nem o tempo ousou jamais calar.
No seu cristal se espelha o meu lugar,
da Cela ao Tejo, em vínculo primeiro,
fé que resiste ao sopro derradeiro,
pátria que o exílio não pôde apagar.
Não é dor só, mas canto que me guia,
é pertença, raiz, semente e chão,
é ponte erguida entre a noite e o dia.
Assim se escreve em lágrima a canção
de quem recorda e, em sua poesia,
faz do silêncio herança e oração.
A Cela era, nesse tempo, um retrato em miniatura da Angola em ascensão: plantações férteis, comboios a ligar o interior ao mundo, fábricas que prometiam modernidade, escolas que formavam novas gerações e, no centro de tudo, a ELA, que transformava o leite em riqueza tangível. Para nós, habitantes daquela terra, parecia que o futuro era inabalável.
Mas o tempo que viria mostraria que até as estruturas mais sólidas podem ser abaladas por ventos de mudança.
Capítulo 3 — O Tejo em Sonho e o Morro Waku em Fé
A espiritualidade da Cela sempre se ergueu em pedra, em memória e em devoção. Cada geração encontrava nas igrejas e capelas não apenas um espaço de culto, mas também um ponto de encontro onde a vida quotidiana se entrelaçava com a eternidade.
No coração da cidade, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção dominava a paisagem com a sua imponência barroca. Cercada por um jardim cuidado, era um farol espiritual que marcava o ritmo das procissões, das festas e dos sinos que soavam como guias da comunidade. A sua presença majestosa recordava que a fé podia ser, também, beleza e ordem.
No alto do morro, como que vigiando a cidade e estendendo a bênção sobre o planalto, erguia-se a Capela de São Cristóvão. A sua simplicidade moderna contrastava com a imponência da Matriz, mas transmitia uma força diferente — a da proximidade com o céu. A subida até à capela era, para muitos, um ato de peregrinação: cada passo na encosta representava esforço, cada oração ali proferida ganhava o eco das pedras e dos ventos.
Já nos aldeamentos que floresciam ao longo da década de 1950, outro templo se erguia como símbolo de pertença e união: a Igreja de Sé Nova, no Aldeamento Nove. Com linhas sóbrias e vitrais em arco, foi concebida para servir as famílias camponesas que trabalhavam a terra no âmbito do Colonato da Cela. Não possuía a imponência da Matriz nem a mística da Capela, mas oferecia algo essencial: a certeza de que mesmo nas distâncias do campo havia um altar, uma palavra e um espaço de comunhão.
Estes três monumentos religiosos; a Matriz, a Capela e a Sé Nova do Aldeamento Nove formavam um triângulo espiritual que sustentava a vida da Cela. Eram a prova de que a fé, nas suas diferentes formas, acompanhava cada momento: das procissões na cidade às peregrinações no morro, das colheitas nos campos às festas comunitárias nos aldeamentos. Juntos, eles traduzem a essência de uma terra onde o quotidiano e o sagrado sempre caminharam lado a lado.



A Igreja da Sé Nova, no Aldeamento Nove, erguia-se como centro espiritual das famílias camponesas. Foi ali que se celebraram as Festas do Espírito Santo, tradição levada pelos açorianos, em que a fé se expressava na mesa farta, no cortejo coroado e no gesto solidário de repartir. O templo não era apenas um espaço de missa; era um lugar de pertença, onde o sagrado se encontrava com a vida comunitária e onde os colonos, lado a lado com vizinhos angolanos, renovavam os laços da partilha e da esperança.
As Festas do Espírito Santo no Colonato da Cela
No Colonato da Cela, a fé ganhava expressão não apenas nos altares de pedra, mas também nas ruas e nas mesas fartas durante as Festas do Espírito Santo. Essa tradição, trazida pelos colonos açorianos, replicava em Angola os mesmos ritos que ainda hoje se vivem em comunidades açorianas espalhadas pelos Estados Unidos.
No Aldeamento 12, Macedos de Cavaleiro, a festa atingia o seu esplendor. As ruas eram enfeitadas com bandeiras e arcos de flores. No centro, erguia-se o Império, pequeno templo dedicado ao Espírito Santo, onde se guardavam a coroa, o cetro e a bandeira. Ali acontecia a coroação das rainhas, geralmente jovens escolhidas entre as famílias locais, que representavam pureza, esperança e continuidade.
Seguiam-se as procissões e os desfiles, acompanhados por música, tambores e acordeões. O cortejo percorria o aldeamento até à igreja, levando consigo símbolos religiosos e o espírito de comunidade. Ao cair da tarde, o espaço enchia-se de danças tradicionais, fados e modinhas que ecoavam tanto a saudade da pátria distante como a alegria da partilha.
O ponto mais esperado era sempre a distribuição gratuita da comida. A sopa do Espírito Santo, rica e fumegante, era servida a todos sem distinção. Era o gesto que simbolizava o coração da festa: ninguém ficava de fora. Carne, pão e vinho completavam a mesa farta, reforçando a ideia de abundância e fraternidade.
Para os açorianos da Cela, celebrar o Espírito Santo era mais do que manter uma tradição. Era afirmar uma identidade coletiva, preservar uma memória e projetar esperança num futuro comum. Portugueses e angolanos participavam lado a lado, partilhando não só a refeição, mas também o sentido profundo de que a fé verdadeira se expressa em comunidade.



Soneto da Fé que Une Céu e Terra
Ergue-se a torre em pedra e devoção,
da Matriz vem o som que o povo guia,
no Waku, a capela ao céu se erguia,
no campo, Sé Nova era comunhão.
Três templos vivos, laços de união,
pilares firmes de fé e de harmonia,
que em procissão, no canto e na alegria,
faziam da Cela um só coração.
E o Espírito Santo em festa ardente
coroa rainhas, reparte o pão,
sopas que nutrem corpo e toda a gente.
Naquele instante em pura celebração
Angola e Açores viviam presente,
e a fé era ponte, memória e canção.
Entre igrejas, capelas e festas, a Cela ensinou-me que a fé não é apenas rito, mas raiz que se estende para além do tempo. Foi nas pedras da Matriz, no vento do Waku e nas coroas do Espírito Santo que aprendi a escutar o silêncio da alma e a reconhecer que a pertença se escreve em comunidade.
Essas memórias, guardadas como relíquias, não ficaram presas ao passado. Acompanharam-me na travessia do oceano, sustentaram-me no exílio e continuam a iluminar o presente. Pois se a terra deu frutos e a fé deu sentido, a vida ensinou-me que o verdadeiro legado não está apenas no que herdamos, mas no que somos capazes de transmitir.
É com esse espírito que sigo adiante, do altar da infância para o horizonte da maturidade, onde o coração aprende a refletir sobre o peso e a leveza de uma vida inteira.
Capítulo 4 — O Legado de Uma Vida: Contribuições e Reflexões
À medida que o tempo passou e as raízes da infância ficaram gravadas na memória, comecei a refletir sobre o que significa verdadeiramente viver uma vida com sentido. O exílio ensinou-me que o sucesso não pode ser medido apenas pelos bens materiais ou pelas conquistas profissionais, mas sobretudo pelas relações que cultivamos e pelo impacto que deixamos naqueles que nos rodeiam.
Nos Estados Unidos, onde reconstruímos a vida com esforço e esperança, descobri que cada sacrifício tinha um propósito maior. Não se tratava apenas de garantir o futuro dos filhos, mas também de dar testemunho de resiliência e de transformação. A cada desafio superado, a cada noite de incerteza vencida, acrescentava-se mais um tijolo ao legado que queria deixar.
O verdadeiro valor da vida não está em títulos ou em património. Está na capacidade de inspirar, de servir e de transmitir algo que perdure. É nesse equilíbrio entre memória e ação, entre herança recebida e contributo pessoal, que se escreve o legado de uma existência.
Hoje, ao olhar para trás, vejo que não caminhei sozinho. Trago comigo a força dos meus avós, a coragem dos meus pais, a cumplicidade da minha família, e a fé que aprendi nos sinos da Cela. Tudo isto converge no presente como um farol que me guia.
A Família como Primeiro Legado
A família foi sempre o meu primeiro altar. Nos momentos de exílio, quando tudo parecia desmoronar-se, era na união familiar que encontrava a força para seguir em frente. A cada dificuldade superada, a cada refeição partilhada, compreendi que o amor é a herança mais duradoura que podemos deixar.
Os meus pais ensinaram-me que dignidade e coragem não se herdam em palavras, mas em gestos. O seu exemplo tornou-se bússola para a minha vida e modelo para a minha própria caminhada como pai e avô. Hoje, ao ver os meus filhos (Michael e Steven), minha filha (Cristina) e neto (Mason) seguirem os seus próprios caminhos, sinto que o esforço valeu a pena. O legado da família não é estático: é chama que passa de geração em geração, iluminando novas estradas.
A Profissão como Espaço de Construção
A minha vida profissional foi mais do que um meio de sustento: foi palco de criação e de responsabilidade. Na engenharia encontrei não apenas números e circuitos, mas a possibilidade de construir memória para as máquinas e futuro para as pessoas. Cada projeto concluído era uma afirmação de que o conhecimento pode e deve estar ao serviço do bem comum.
Não foi um caminho fácil. Houve noites de incerteza, pressões intensas e decisões que exigiram coragem. Mas também houve conquistas, inovação e a certeza de que contribuí para algo maior do que eu. A profissão ensinou-me que o verdadeiro êxito não está apenas em alcançar metas, mas em abrir caminhos para os que virão depois.
O Serviço à Comunidade como Chamamento
A vida não pode ser apenas privada; ela ganha plenitude quando se abre aos outros. Desde cedo percebi que a comunidade é parte essencial de quem somos. Servi a minha terra natal através da memória, preservando histórias que não podiam cair no esquecimento. Servi também nos lugares por onde passei, apoiando jovens, colegas e amigos, sempre com a convicção de que partilhar conhecimento é multiplicar futuro.
O serviço à comunidade não se faz de grandes gestos apenas. Faz-se de escuta, de partilha, de estar presente. Cada palavra escrita, cada testemunho preservado, cada memória resgatada é uma forma de dar algo de volta. No fundo, é a maneira que encontrei de honrar os que vieram antes e de inspirar os que hão de vir.
Soneto do Legado
Na chama da família arde o destino,
luz que resiste ao vento e ao cansaço,
pilar erguido em fé, ternura e abraço,
herança pura em sangue cristalino.
No labor achei caminho peregrino,
circuito vivo em ordem e em compasso,
a profissão tornou-se o firme laço
que une o engenho ao sonho mais divino.
E ao servir senti-me inteiro e pleno,
pois comunidade é corpo, é coração,
memória viva, altar do mais terreno.
Assim se escreve a vida em doação,
legado eterno em gesto sempre ameno,
em família, trabalho e compaixão.
Nestes três eixos — família, profissão e comunidade — reconheço o fio que entrelaça a minha vida. É nesse entrelaçar que descubro o sentido do meu legado: viver de tal forma que a memória se torne exemplo, que o trabalho se torne contributo e que a partilha se torne serviço.
Olhando para trás, vejo que cada passo deixou um rastro: o calor da família, o rigor da profissão e a entrega à comunidade. Esse rastro não é linha reta, mas teia viva que me sustenta e me projeta. Se até aqui procurei compreender o sentido de um legado, daqui em diante desejo mostrar como esse legado se construiu no concreto da vida.
As memórias que nasceram na Cela viajaram comigo, transformaram-se em bússola no exílio e tornaram-se sementes lançadas em terra estrangeira. Foi nos Estados Unidos que o suor dos dias ganhou forma em projetos, que a disciplina se converteu em inovação e que a saudade encontrou tradução em serviço.
Agora, convido o leitor a seguir-me para além da reflexão e a entrar no território da experiência. O próximo capítulo abre as portas para os caminhos onde o ideal se tornou prática, onde a memória se fez ação e onde o futuro começou a ser desenhado com mãos firmes e coração vigilante.
Capítulo 5 — Raízes em Terra Estrangeira: Construção e Pertencimento
A travessia para os Estados Unidos não foi apenas uma mudança de geografia. Foi um renascimento. Com uma mala de memórias e a urgência de começar de novo, aprendi que o exílio não é apenas perda, é também oportunidade de reinvenção. O chão era estranho, mas a vontade era antiga: trabalhar, servir, permanecer fiel às raízes.
Nos primeiros tempos, cada gesto trazia a marca da adaptação. As ruas largas, os supermercados cheios, as vozes em inglês soavam como promessa e desafio. Tudo era novo e, ao mesmo tempo, distante. Mas dentro de mim levava o compasso aprendido na Cela: disciplina, resiliência e fé. Esses valores foram os primeiros alicerces da minha vida em terra estrangeira.
Foi na profissão que encontrei a primeira ponte entre dois mundos. A engenharia não falava apenas a língua da técnica; falava também a língua universal da lógica e da criação. Com ela, pude abrir portas, conquistar respeito e afirmar que um filho de Angola e de Portugal também podia escrever o futuro na América. Cada projeto concluído era mais do que trabalho: era sinal de pertença, era prova de que o exilado podia transformar saudade em contributo.
Ao mesmo tempo, a família crescia, e com ela crescia também o sentido de responsabilidade. Ser pai e marido em terra estrangeira era aprender a transmitir raízes sem deixar de abrir asas. Ensinei aos meus filhos que a pátria está tanto no sangue como na memória, e que a verdadeira herança não é apenas a terra deixada para trás, mas a dignidade com que se vive no presente.
Na comunidade, descobri outra forma de ser inteiro. Participar, apoiar, ensinar, escrever, preservar memórias — tudo isso se tornou extensão do meu ser. Percebi que servir não é dever imposto, é chamado íntimo. Era como se cada gesto de partilha devolvesse ao mundo um pouco do muito que tinha recebido.
A Adaptação ao Exílio
Chegar aos Estados Unidos foi, ao mesmo tempo, libertação e desafio. A liberdade de recomeçar trazia consigo a incerteza de não ter nada estabelecido. As ruas largas, os supermercados cheios e a língua que soava distante eram sinais de um mundo novo, mas também barreiras a vencer. Cada gesto simples — procurar trabalho, frequentar a escola, aprender o idioma — exigia resiliência.
O coração, contudo, carregava a batida da Cela. A disciplina herdada do avô João, a coragem dos meus pais e a fé vivida no morro Waku foram os primeiros instrumentos de adaptação. Não se tratava apenas de sobreviver, mas de encontrar um lugar que pudesse chamar lar, mesmo estando a milhares de quilómetros da pátria.
Nesse processo, descobri que o exílio não apaga raízes, apenas as força a crescer em novas direções. E em cada pequeno triunfo — uma conversa em inglês compreendida, um amigo conquistado, uma porta de trabalho aberta — nascia um sinal de pertença.
A Afirmação Profissional
A profissão foi o espaço onde pude transformar memória em futuro. A engenharia não falava apenas a língua da técnica; era também um idioma universal que abria portas e conquistava respeito. Através dela construí não só uma carreira, mas também a ponte entre a herança recebida e a inovação que podia oferecer ao mundo.
Trabalhar como engenheiro significava mais do que resolver problemas técnicos. Era dar corpo a um contributo que unia precisão e criatividade, esforço individual e progresso coletivo. Em cada projeto concluído, havia mais do que números e diagramas: havia a afirmação de que um jovem vindo de Angola, moldado pelo rigor português, podia deixar marca na indústria americana.
Não foi um caminho sem obstáculos. A pressão era intensa, as exigências elevadas, e muitas vezes a responsabilidade pesava. Mas foi precisamente nesses momentos que descobri a minha verdadeira força. A cada desafio superado, a cada sistema validado, a cada equipa guiada, sentia que não estava apenas a construir máquinas: estava a erguer uma história de perseverança.
O Contributo Comunitário
Se a profissão me deu voz no mundo do trabalho, foi na comunidade que encontrei a plenitude do ser. O exílio ensinou-me que não basta conquistar para si; é preciso partilhar com os outros. Assim, tornei-me guardião de memórias, contador de histórias, apoio para os que chegavam depois de mim.
Servir a comunidade não foi apenas um gesto de bondade, mas um chamamento íntimo. Preservar testemunhos, ensinar jovens, apoiar colegas, escrever sobre a verdade histórica — tudo isto se tornou parte da minha missão. Em cada encontro comunitário, em cada partilha de saberes, em cada texto publicado, estava presente a convicção de que a memória é um bem coletivo.
Foi nesse espaço de comunhão que compreendi que o legado não se mede apenas pelas conquistas individuais, mas pela capacidade de inspirar e elevar os outros. Servir é multiplicar-se; é transformar a experiência pessoal em herança comum.
Entre adaptação, profissão e comunidade, reconheço os três pilares que sustentaram a minha vida nos Estados Unidos. O exílio deixou de ser apenas separação para se tornar construção. O trabalho deixou de ser apenas esforço para se tornar afirmação. E a comunidade deixou de ser apenas grupo para se tornar pátria partilhada.
Soneto do Exílio Transfigurado
Cheguei sem nada, e o mundo parecia
estranho chão, distante e sem guarida,
mas dentro de mim pulsava a vida
da Cela e do Tejo em melodia.
No labor firme achei a geografia
onde raiz e futuro se reunida,
e a profissão tornou-se a clara lida
que fez do engenho voz e poesia.
Na comunidade enfim me descobri,
pois dar aos outros é também vencer,
e o exilado aprende a ser aqui.
Assim se escreve o fado de viver:
trazer na alma a pátria que perdi,
e em cada gesto um novo lar tecer.
O exílio ensinou-me a erguer raízes em terra nova. Entre o esforço da adaptação, o rigor da profissão e a partilha com a comunidade, aprendi que a identidade não se perde, transforma-se. Cada passo dado nos Estados Unidos foi mais do que sobrevivência: foi semear no presente aquilo que queria legar ao futuro.
Mas havia ainda um espaço onde a vida se tornaria ponte entre memória e inovação: a carreira de engenheiro. Foi aí que descobri como o cálculo podia guardar lembranças, como um circuito podia ser herança, e como a tecnologia podia ser também pátria.
É neste território, entre diagramas e sonhos, entre máquinas e humanidade, que entraremos agora. O próximo capítulo é a narrativa de um caminho onde o engenho se torna memória viva e onde cada projeto carrega em si a marca de uma história maior.
Capítulo 6 — Entre Circuitos e Memórias
A engenharia sempre foi para mim mais do que profissão: foi linguagem, território e destino. Quando cheguei à Micron, descobri que cada circuito que desenhava era também uma forma de escrever história. Entre números, diagramas e tabelas escondia-se algo mais profundo: a possibilidade de transformar memória em futuro.
As máquinas não têm lembranças, mas armazenam dados. E foi nesse espaço liminar, entre a frieza do silício e o calor da experiência humana, que encontrei o meu lugar.
Trabalhar na Micron significava construir não apenas chips, mas estruturas que sustentariam a vida digital de milhões de pessoas. O que parecia apenas técnico tornou-se para mim um ato quase poético: dar forma material àquilo que o mundo não queria esquecer.
Recordo os primeiros anos como um tempo de intensidade e de descoberta. As equipas eram pequenas, os recursos limitados, mas a ambição imensa. Cada conquista era fruto de noites longas, debates acesos e coragem para arriscar. Ali aprendi que a inovação não nasce do conforto, mas da tensão criativa entre problema e solução.
No entanto, a minha maior realização não esteve apenas nos circuitos concluídos, mas nas pessoas que caminharam comigo. Fui chamado não só a desenhar sistemas, mas a estruturar equipas, processos e métodos de trabalho. A fundação da equipa de SSD foi mais do que um desafio técnico; foi um exercício de liderança e de confiança. Vi crescer um grupo que começou modesto e se tornou referência, fruto de disciplina, partilha e visão comum.
Cada reunião, cada projeto, cada norma criada era uma peça de um edifício maior. E nesse edifício, erguido em Boise, Longmont e Folsom, reconheci a mesma chama que herdara da Cela: o desejo de construir algo sólido, de deixar marca, de erguer um legado que sobrevivesse ao tempo.
A Construção na Micron
Entrar na Micron foi como atravessar um limiar entre sonho e realidade. O mundo da engenharia que até então se desenhava em livros e cálculos tornou-se laboratório vivo, cheio de possibilidades e responsabilidades. Ali aprendi que cada detalhe importa, que um traço num diagrama pode decidir o sucesso ou o fracasso de um sistema inteiro.
Foram anos de crescimento acelerado. O ritmo era intenso, mas havia uma energia contagiante: a certeza de que estávamos a escrever o futuro da memória digital. Trabalhar em DRAM, SSD e arquiteturas de ponta não era apenas uma questão de técnica, era também uma missão. E para mim, essa missão tinha uma ressonância íntima: se a minha vida fora marcada por perdas e exílio, ali estava eu a ajudar a construir tecnologias que preservavam dados, vozes e histórias.
Na Micron não encontrei apenas uma carreira, encontrei um palco onde pude unir rigor técnico e sentido humano.
A Fundação da Equipa de SSD
Um dos momentos mais marcantes da minha trajetória foi a fundação da equipa de SSD. Começámos como um grupo reduzido, quase experimental, mas com a determinação de lançar alicerces sólidos para uma nova era de armazenamento.
A liderança exigia mais do que conhecimento técnico; pedia visão e confiança. Tive de aprender a escutar, a delegar, a guiar pelo exemplo. Cada membro da equipa trazia talentos diferentes, e a arte estava em harmonizar essas vozes num projeto comum.
O que começou com quatro engenheiros transformou-se numa equipa de dezenas, espalhada por Boise, Longmont e Folsom. Crescemos em número, mas sobretudo em maturidade. Tornámo-nos referência, não por termos seguido caminhos fáceis, mas por termos ousado definir padrões onde antes havia incerteza.
Essa equipa foi como uma segunda família. Partilhávamos não apenas prazos e metas, mas também sonhos e convicções. E foi nesse espírito de comunhão que percebi que a verdadeira liderança não está em mandar, mas em construir junto.
A Criação das Normas de Trabalho
Nenhum edifício se mantém de pé sem alicerces claros. Percebi cedo que, se queríamos crescer de forma sustentável, era preciso estruturar processos, definir normas e criar padrões que servissem de guia às gerações futuras.
Assim nasceram as normas de trabalho e especificações que introduzi e documentei em Confluence. Não eram meros papéis burocráticos: eram mapas que garantiam consistência, clareza e eficiência. Com elas, criámos uma linguagem comum entre equipas e projetos, evitando erros e abrindo espaço para inovação responsável.
As normas tornaram-se herança coletiva. Não eram minhas, eram de todos os que as aplicavam e aperfeiçoavam. Ao vê-las adotadas e seguidas mesmo depois de eu ter passado o bastão, senti que tinha deixado uma marca mais duradoura do que qualquer circuito individual: uma cultura de rigor, colaboração e memória.
Entre construção técnica, liderança humana e criação de processos, percebo que o meu percurso na Micron foi mais do que profissional. Foi também pessoal, quase espiritual. Em cada projeto havia um eco das minhas raízes; em cada norma criada, um reflexo da disciplina herdada; em cada equipa guiada, um prolongamento daquilo que aprendi na Cela: que o verdadeiro trabalho não é apenas construir coisas, mas formar pessoas e legados.
Soneto Entre Circuitos e Memórias
Do traço nasce o mundo em silício erguido,
circuito vivo em linhas de energia,
mas nele pulsa a chama que irradia
memória herdada, em código traduzido.
Na equipa vi o sonho repartido,
no gesto firme a mão que conduzia,
e em cada norma escrita florescia
o legado claro, exato e definido.
Não é só máquina o que ali criei,
mas voz humana em arte transformada,
ponte entre passado e o amanhã que dei.
Assim se escreve a obra dedicada:
entre engenho e raiz me encontrei,
num tempo eterno em lâmina gravada.
Entre máquinas e memórias, descobri que a vida não se faz apenas de inovação e progresso. Há em cada um de nós um chamado mais profundo, uma raiz que insiste em regressar à terra. Depois de anos a construir circuitos e equipas, percebi que também precisava de reencontrar o silêncio da natureza, o ciclo das estações, o sabor simples daquilo que brota do chão.
Foi assim que nasceu a Xitaka, não como fuga ao mundo tecnológico, mas como complemento. Se na Micron desenhei linhas invisíveis que corriam em chips e servidores, na Xitaka voltei a desenhar linhas de sulcos na terra, onde sementes se transformavam em fruto.
O próximo capítulo não fala apenas de agricultura. Fala de regresso. De raízes que se estendem para além do exílio, de um reencontro com a memória da Cela e com a promessa de que, mesmo em Idaho, podia florescer um pedaço da minha Angola interior.
Capítulo 7 — A Xitaka em Idaho
A Xitaka nasceu como um sonho plantado em solo estrangeiro. No coração de Idaho, entre campos que não eram meus por herança, criei um espaço que se tornou extensão da minha memória. Ali, cada árvore, cada semente, cada pá de terra revolvida era mais do que trabalho agrícola: era um gesto de reencontro.
Não se tratava de voltar atrás, mas de trazer comigo a Cela, o Waku e as paisagens da infância. Ao ver a terra abrir-se em sulcos, recordava os campos do colonato, as colheitas em família e o cheiro da batata recém-tirada da terra. A Xitaka tornava-se, assim, uma ponte: unia o passado vivido em Angola ao presente construído nos Estados Unidos.
Na sombra da grande árvore que domina o terreno, encontrei o lugar onde o corpo descansa e o espírito se eleva. É ali que, aos domingos, sinto o tempo abrandar, e a memória mistura-se com o canto dos pássaros, com os passos dos cães e com as brincadeiras do meu neto Mason. Aquele espaço é mais do que uma propriedade: é um altar de continuidade, onde raízes antigas encontram nova terra para florescer.
Na Xitaka aprendi que o legado não é só o que deixamos para os outros, mas também o que conseguimos preservar em nós mesmos. Cada fruto colhido é memória renovada, cada sombra ao meio-dia é lembrança viva de que a vida pode ser recomeço.
O Regresso Simbólico à Terra
A agricultura na Xitaka não nasceu por necessidade, mas por vocação íntima. Depois de décadas entre circuitos e tecnologia, percebi que também precisava de reencontrar o ritmo da natureza. Idaho ofereceu-me esse espaço. O terreno, antes vazio e anónimo, tornou-se tela onde pude projetar a memória da Cela.
Cada canteiro semeado era um gesto de continuidade. O cheiro da terra revolvida evocava recordações das colheitas em Santa Comba, das vozes do meu avô e dos trabalhadores no campo. Ao plantar árvores e cuidar dos animais, senti que estava a reconstruir um pedaço do que ficou para trás em 1975.
A Xitaka tornou-se, assim, mais do que uma quinta. Era um pedaço de Angola recriado em solo americano, um lugar onde o exílio deixava de ser ausência para se tornar presença transformada.
A Sombra da Árvore e o Renascimento das Raízes
No centro da Xitaka ergue-se uma grande árvore, de copa generosa e sombra vasta. É ali que encontro o refúgio mais profundo. Aos domingos, sentado numa cadeira simples, deixo que o tempo se dissolva, enquanto os cães correm e o meu neto Mason brinca.
Sob essa árvore, compreendi que o legado não é apenas o que construí no mundo do trabalho, mas também o espaço de pertença que deixo para a família. A sombra que me acolhe é a mesma que acolhe gerações seguintes, como se a árvore tivesse raízes no passado e ramos voltados para o futuro.
Na quietude desse lugar, sinto-me novamente em Angola. A brisa de Idaho mistura-se com o eco distante dos sinos do Waku e com as vozes da minha infância. A árvore da Xitaka não é apenas um ser vivo: é um símbolo. Representa o renascimento das raízes em solo novo, a prova de que a memória pode florescer em qualquer parte do mundo.
Soneto da Sombra e da Herança
Na Xitaka encontrei novo caminho,
em terra alheia fiz brotar memória,
e cada fruto guarda antiga história
do campo amado que ficou vizinho.
Debaixo da árvore, em repouso digno,
vejo em Mason futuro e trajetória,
neto que ri, herdeiro da vitória
de transformar saudade em doce hino.
Ali o tempo é ponte que se estende,
raízes velhas renascem outra vez,
e o exilado em paz já se compreende.
Se o mundo leva, a vida também traz,
e a sombra viva, firme que me prende,
é herança eterna em chão de nova paz.
Na sombra da árvore da Xitaka encontrei mais do que descanso. Encontrei a prova de que a vida não se esgota em perdas ou distâncias, mas se renova sempre que o amor encontra raízes. Ao ver Mason brincar, percebi que a continuidade não é apenas sonho, é realidade viva que se move diante dos meus olhos.
Se a Xitaka simboliza o reencontro com a terra, é na família que o verdadeiro legado se escreve. Judy, companheira de todas as travessias, filhos que herdaram o fôlego da esperança e neto que transformam memória em futuro. Todos eles são a verdadeira colheita.
O próximo capítulo abre-se para esse território íntimo e profundo, onde a história deixa de ser apenas minha e se torna herança partilhada. Pois a pátria pode ser perdida, reconstruída ou reinventada, mas é na família que ela permanece eterna.
Capítulo 8 — Família e Legado
No centro de todas as minhas conquistas e de todos os meus recomeços esteve sempre Judy. Mais do que companheira, ela foi a âncora que manteve firme o barco nas tempestades e o vento que o empurrou nas calmarias. Ao seu lado, cada renúncia ganhou sentido, e cada vitória tornou-se partilhada.
Judy foi o rosto constante no exílio, a mão que segurou a minha quando o futuro parecia incerto. Na sua serenidade encontrei coragem, e no seu sorriso encontrei casa. Não foi apenas mãe dos meus filhos, foi também guardiã de um lar onde a memória se manteve acesa e onde a esperança nunca se apagou.
Os filhos cresceram nesse ambiente de fé e resiliência. Herdaram não apenas histórias de Angola e de Cela, mas também o exemplo vivido da dedicação. Cada um, ao seu modo, transformou esse legado em caminho próprio, provando que a herança mais valiosa não é o que se possui, mas o que se transmite em valores.
E depois veio o neto, trazendo consigo a confirmação de que a vida é uma corrente inquebrável. Em Mason, vejo refletida a continuidade do meu avô João e do meu pai, como se gerações inteiras estivessem presentes naquele sorriso simples. É ele quem me lembra, todos os dias, que a memória não é apenas guardada em palavras ou livros, mas sobretudo em gestos de afeto.
A família é, portanto, a minha verdadeira pátria. Nela encontro a razão para ter lutado, resistido e construído. Se a Xitaka simboliza o regresso à terra, Judy, os filhos e o neto simbolizam o regresso ao coração.
Judy como Pilar
Desde o primeiro dia, Judy foi mais do que esposa: foi guardiã da esperança. No exílio, quando tudo parecia ruir, foi ela quem manteve acesa a chama da confiança. A sua força não se expressava em gestos grandiosos, mas em constância. Na sua presença encontrei refúgio, na sua paciência encontrei paz.
Judy acompanhou-me em cada mudança, em cada cidade, em cada reinício. Partilhou comigo não apenas os frutos da vitória, mas também os silêncios da incerteza. A sua capacidade de transformar casas em lares e dificuldades em oportunidades foi o esteio sobre o qual ergui cada projeto. Sem ela, o caminho teria sido árido; com ela, tornou-se fértil.
Os Filhos como Continuidade
Os filhos nasceram num lar marcado pela memória de Angola e pela promessa de um futuro melhor. A cada história contada sobre a Cela, sobre o Morro Waku ou sobre o avô João, acrescentava-se mais uma camada ao tecido da identidade que herdaríamos.
Cresceram entre culturas, aprendendo a viver no espaço híbrido entre raízes portuguesas, memórias angolanas e horizontes americanos. Não herdaram apenas a saudade, herdaram sobretudo a resiliência. Cada um, ao seu modo, soube transformar essa herança em percurso próprio, provando que o verdadeiro legado não é prisão do passado, mas inspiração para o futuro.
Mason como Herança Viva
Quando Mason chegou, a linha do tempo transformou-se em círculo. Nele vejo não apenas o futuro, mas também o eco de todos os que vieram antes. O seu riso é ponte entre o avô João da Rocha Machado Salvador e mim, entre a Cela e Idaho, entre a memória e a promessa.
Na sua infância reencontro a minha, mas com a paz que não tive. Ele corre livre na sombra da árvore da Xitaka, sem o peso do exílio ou da guerra, como se cada geração tivesse trabalhado para lhe oferecer essa leveza. Mason é, assim, mais do que neto: é testemunho vivo de que a memória pode transformar-se em herança luminosa.
Entre Judy, os filhos e Mason, a família mostra-se como o verdadeiro alicerce da minha vida. Tudo o que construí — na profissão, na comunidade, na escrita — encontra aqui a sua razão maior. A família é o livro mais importante que escrevi, página a página, com amor, sacrifício e continuidade.
Soneto da Pátria do Coração
Em Judy firme achei meu fundamento,
nas suas mãos guardou-se a claridade,
e foi seu rosto farol na tempestade,
abrigo certo em todo o sofrimento.
Dos filhos veio o doce ensinamento
de que o futuro é herança de verdade,
não de riqueza vã, mas de vontade
que faz do amor eterno monumento.
E em Mason vejo o riso renascer,
correndo livre à sombra da raiz,
eco da Cela em paz a florescer.
Família é pátria, é lar, é o que me diz
que a vida é mais que o tempo pode ter:
é dom que passa e sempre nos refaz feliz.
Na família encontrei o coração da minha pátria. Em Judy, a fidelidade da vida partilhada; nos filhos, a continuidade de uma herança feita de coragem e ternura; em Mason, a prova viva de que a memória floresce em novas gerações. Ali, entre laços de sangue e de amor, compreendi que tudo o que construí ganha sentido apenas quando transmitido.
Mas a vida ensinou-me também que a pátria não se guarda só em abraços. Guarda-se nas palavras que escrevemos, nos testemunhos que preservamos, nas histórias que recusamos deixar morrer. Assim nasceu o blog, não como passatempo, mas como necessidade vital: um território literário onde memórias se transformam em permanência.
O próximo capítulo abre-se para esse espaço da palavra, onde o íntimo se torna público, onde a memória pessoal se transforma em património coletivo. Porque escrever é também uma forma de servir, de regressar e de permanecer.
Capítulo 9 — O Blog como Pátria Literária
O blog não nasceu por acaso. Nasceu da urgência de dar voz ao silêncio, de resgatar memórias que a História oficial tentou apagar, e de oferecer às gerações futuras um arquivo vivo. ElmiroChaves.com tornou-se pátria paralela, erguida não em pedra e cimento, mas em palavras que não se deixam consumir pelo tempo.
Cada texto publicado foi mais do que exercício de escrita: foi ato de resistência e de pertença. Nele, a infância em Cela ganhou corpo, o exílio encontrou voz, e a diáspora tornou-se comunidade. O blog não é apenas meu; pertence a todos os que nele se reconhecem, leitores dispersos entre continentes, unidos pela língua e pela memória.
Escrever foi reencontrar a pátria perdida, mas também criar uma nova. No espaço virtual, reencontro os rostos da infância, as vozes dos que partiram e as perguntas dos que nasceram depois. Ao escrever, não sou apenas autor: sou guardião. Guardo histórias, guardo afetos, guardo o fio invisível que nos liga através do tempo e da distância.
Assim, o blog é mais do que um espaço literário. É altar, é arquivo, é casa. Nele convergem as vozes da minha terra e as inquietações do presente, transformadas em páginas que ninguém poderá silenciar.
ElmiroChaves.com como Arquivo Vivo
Quando abri o blog ElmiroChaves.com, percebi que estava a fundar mais do que um espaço digital: estava a erguer um arquivo de memórias. Cada publicação era uma pedra colocada num edifício invisível, mas duradouro. Ali, as histórias da Cela, os ecos do exílio e as reflexões do presente encontraram lugar para habitar.
O blog tornou-se uma extensão da minha identidade, uma pátria literária onde o passado podia ser preservado e o futuro podia ser alimentado. Não é apenas para mim que escrevo, mas para todos os que procuram compreender de onde viemos e para onde vamos. A palavra escrita tem esse poder: fixa o instante e projeta-o além do tempo.
Ao longo dos anos, vi este espaço crescer como uma árvore de ramos largos. Cada ramo era um texto; cada folha, um testemunho. E, tal como acontece com as árvores da Xitaka, a seiva que percorre este tronco literário vem das raízes da memória, sempre vivas, sempre presentes.
Voz Própria, Testemunhos Partilhados
O blog não é apenas um diário pessoal, é um lugar de encontro. Nele partilho não só a minha voz, mas também as vozes de outros que viveram a mesma história. Testemunhos de retornados, memórias de amigos de infância, palavras de companheiros da diáspora — todos eles encontram espaço nas páginas digitais que criei.
Este ato de partilha é também ato de justiça. A História oficial muitas vezes silenciou estas vozes, ou reduziu-as a notas de rodapé. No entanto, no blog, cada memória tem dignidade, cada experiência tem lugar. Ao dar visibilidade ao vivido, resgato a verdade da nossa geração e crio pontes para que os mais jovens possam compreender o peso e a beleza dessa herança.
Escrever tornou-se serviço. Não é apenas preservação pessoal, é construção comunitária. É um modo de dizer: “Nós existimos. Nós sofremos. Nós também sonhámos.” Ao partilhar, descubro que a memória não é posse individual, mas património coletivo.
Assim, o ElmiroChaves.com deixou de ser apenas uma página digital e tornou-se lugar de pertença. Um território sem fronteiras, onde as palavras são pátria, e onde cada leitor que se reconhece encontra abrigo. É a prova de que a memória, quando partilhada, não se perde: multiplica-se.
Soneto da Palavra como Pátria
Na página erguo a pátria que não morre,
em letras firmes fixo o que se esquece,
e a voz do exílio em lume se enriquece,
memória acesa que jamais se cobre.
Do tempo antigo o eco ainda corre,
nas linhas novas a raiz floresce,
e em cada texto a verdade resplandece,
ponte que une o que a distância absorve.
Não é só minha a voz que aqui se escuta,
mas coro inteiro em canto repartido,
história viva em partilha absoluta.
Se o chão foi longe, aqui foi redimido:
na escrita a pátria eterna se executa,
e em cada leitor renasce o meu sentido.
O blog ensinou-me que a palavra pode ser casa, pátria e arquivo. Mas também me mostrou que a memória pessoal, quando partilhada, se torna memória coletiva. Escrevendo, percebi que já não falava apenas de mim, mas de todos os que viveram, sofreram e sonharam a mesma história.
Foi dessa descoberta que nasceu a necessidade de ir mais fundo. De não me contentar apenas com as minhas lembranças, mas de escutar e guardar as vozes que o tempo tentou silenciar. Porque a memória não é plena enquanto não for plural.
O próximo capítulo abre-se nesse espírito de resgate. Raízes Silenciadas não é apenas uma série literária, é um gesto de justiça: devolver voz a quem a História calou, dignidade a quem foi esquecido, lugar a quem foi afastado. É o testemunho de que recordar não é ferida, mas sim cura.
Capítulo 10 — Raízes Silenciadas
A escrita, até então espaço de memória pessoal, tornou-se caminho para algo maior: o resgate das vozes esquecidas. Percebi que a minha história não existia isolada, mas entrelaçada com a de milhares que viveram a mesma ruptura, a mesma diáspora, a mesma saudade. Foi assim que nasceu Raízes Silenciadas, não apenas como série de textos, mas como projeto de justiça literária.
O título não foi escolhido ao acaso. As raízes, que a História tentou arrancar ou apagar, permanecem vivas sob a terra da lembrança. E o silêncio que lhes foi imposto — silêncio de exílio, de medo, de esquecimento — podia ser quebrado pela palavra escrita. Cada testemunho recolhido, cada memória partilhada, era uma semente que germinava no presente, dando voz ao que parecia perdido.
Raízes Silenciadas tornou-se espaço de encontro. Ali, retornados, descendentes, amigos e desconhecidos encontraram-se em páginas que devolviam dignidade. Não se tratava de reabrir feridas, mas de curá-las pela partilha. A ética estava em dizer a verdade sem ódio, narrar a dor sem vingança, e construir, na palavra, uma ponte para a reconciliação possível.
Assim, este projeto não é apenas literatura. É memória coletiva, é herança preservada, é futuro aberto. Porque as raízes, mesmo quando silenciadas, encontram sempre forma de renascer.
A Série de Memórias como Resgate Coletivo
Raízes Silenciadas nasceu como uma resposta ao vazio. Onde a História oficial deixava silêncio, a literatura entrou para dar voz. Cada episódio da série foi construído como mosaico de testemunhos, fragmentos de vidas interrompidas e esperanças adiadas. Não era apenas um exercício de escrita, era um ato de escuta.
As páginas recolhem tanto as minhas memórias quanto as dos que caminharam ao meu lado: vizinhos que viram a normalidade quebrar-se, amigos de infância que ainda carregam no olhar o reflexo da Cela, famílias que, no exílio, tiveram de aprender a sobreviver com pouco e a viver com dignidade. Ao dar-lhes espaço, transformei o blog num lugar de encontro, um arquivo onde a memória se multiplica.
O valor da série está no seu caráter coletivo. Não se trata de um autor a narrar o seu passado, mas de uma comunidade a reencontrar-se nas palavras. Em cada testemunho publicado, mais vozes ecoam; em cada memória partilhada, mais vidas recuperam dignidade.
Ética da Memória: Contar sem Odiar
Falar do passado não é tarefa neutra. As feridas da guerra, do exílio e da ruptura carregam consigo dor e ressentimento. Mas desde o início assumi um princípio: escrever não para alimentar rancor, mas para iluminar a verdade.
A ética de Raízes Silenciadas está em contar sem odiar. O ódio aprisiona, mas a memória liberta. Não se trata de negar a dor, mas de dignificá-la sem transformá-la em arma. Cada linha é escrita com a convicção de que recordar é resistir, mas resistir com humanidade.
Este equilíbrio não é fácil. Exige disciplina emocional e uma profunda consciência de que as palavras têm peso. Mas ao escolher a veracidade em vez da retaliação, a partilha em vez da exclusão, construo um caminho em que a memória se converte em herança comum, e não em trincheira.
Assim, Raízes Silenciadas não é apenas uma obra literária: é ato de cura. É o reencontro de uma comunidade com a sua verdade. É a prova de que, mesmo em silêncio forçado, as raízes não se deixam morrer. E quando finalmente encontram voz, não pedem vingança, pedem memória.
Soneto da Memória Justa
Silêncio imposto nunca foi derrota,
pois sob a terra a raiz permanecia,
e mesmo oculta guardava a energia
de renascer quando a palavra a nota.
A dor antiga, embora ainda brota,
já não se escreve em ódio ou tirania,
mas em memória justa que irradia
luz que consola e ferida que se esgota.
Não é vingança o fruto deste canto,
mas voz erguida em nome do que foi,
legado vivo, eterno, puro e santo.
E se o passado o tempo não destrói,
transforma em herança o luto e o pranto,
fazendo história do que a História omitiu.
Ao dar voz às raízes silenciadas, percebi que a memória não é apenas resgate do passado: é também convite ao futuro. Cada testemunho recuperado abre caminho para perguntas que permanecem vivas — que Angola sonhámos? Que Angola ainda podemos construir?
Se a Cela me ensinou o valor da comunidade e o exílio me ensinou o peso da ausência, a palavra trouxe-me a consciência de que a história não está concluída. Ela continua a ser escrita, não apenas nos livros ou nos blogs, mas na vida concreta de um povo que ainda busca dignidade.
O próximo capítulo abre-se para essa reflexão. Não se trata já de recordar apenas o que foi, mas de olhar com coragem para o que pode vir. Entre a Cela da infância e a Angola do futuro, existe uma ponte que a memória ajuda a sustentar. É sobre essa ponte que caminharemos agora.
Capítulo 11 — Entre a Cela e o Futuro
Antes de 1975, Angola era mais do que território: era promessa. Na Cela, essa promessa parecia palpável. O café, o algodão, o sisal, o gado e os campos férteis anunciavam prosperidade. Os caminhos-de-ferro cruzavam planaltos, ligando cidades e portos; as fábricas produziam, os mercados fervilhavam, e até nas aldeias mais afastadas respirava-se a sensação de futuro.
Não se tratava de uma Angola perfeita — havia desigualdades profundas, silêncios forçados e muros invisíveis. Mas havia também energia de crescimento, projetos concretos e um sentido coletivo de que o país podia ocupar lugar de destaque no mundo. Para muitos, inclusive para o meu avô João, Angola era terra de oportunidades, onde o esforço se convertia em fruto e o sonho em realidade.
Na Cela, esse sonho tinha forma humana. Via-se nos agricultores que amanheciam cedo para trabalhar a terra, nos ferroviários que ligavam distâncias, nos comerciantes que animavam as praças. Via-se também nos jovens que, nas escolas, acreditavam que o conhecimento seria a chave para abrir horizontes. Angola era, antes de mais, um país que acreditava em si.
É dessa Angola sonhada — cheia de promessas e contradições, de grandezas e falhas — que parto para refletir sobre o que poderia ter sido e o que ainda pode vir a ser. Porque a memória não é só lembrança do passado; é também projeto do futuro.
Angola que Sonhámos
Na Angola de antes de 1975, havia a sensação de que o futuro estava ao alcance da mão. A Cela simbolizava esse impulso: campos férteis, cooperativas agrícolas, estradas bem traçadas, indústrias emergentes e um quotidiano que, apesar das tensões, respirava progresso. Para quem vivia no colonato, cada colheita era prova de que o esforço tinha resultado, cada comboio que partia carregado de mercadorias era promessa de prosperidade.
Era uma Angola que sonhava alto. Via-se nas exportações de café e sisal, no gado que alimentava mercados distantes, no comércio que se expandia nas cidades. Havia orgulho em saber que o país produzia, crescia e podia competir. Mesmo os mais humildes acreditavam que o trabalho abriria portas e que os filhos teriam futuro melhor.
Esse sonho, contudo, não era uniforme. Para muitos, o acesso à terra, à educação e ao poder continuava limitado. O progresso existia, mas não era partilhado em plenitude. Ainda assim, o imaginário coletivo acreditava que Angola poderia tornar-se grande. Era esse misto de promessa e falha que alimentava tanto a esperança quanto a frustração.
Angola que Pode Vir
Hoje, ao olhar para trás, vejo que parte desse sonho se perdeu nas chamas da guerra e na corrupção que se instalou depois da independência. Angola, apesar da riqueza imensa do seu solo e da energia do seu povo, permanece muitas vezes refém de más decisões, de estruturas frágeis e de interesses alheios. O país que poderia ser celeiro de África tornou-se importador de bens básicos; o país que sonhava liderar tornou-se dependente.
Mas a memória não serve apenas para lamentar. Serve também para recordar que já fomos capazes de construir, de inovar, de prosperar. E se já foi possível uma vez, pode sê-lo de novo. O desafio não está apenas nos recursos naturais, mas na vontade coletiva, na ética da liderança e na capacidade de aprender com os erros.
A Angola que pode vir será aquela que souber unir as raízes da sua história às exigências do presente. Uma Angola que valorize o trabalho como dignidade, a educação como motor e a verdade como fundamento. Uma Angola que não negue as suas feridas, mas que as cure pela coragem de olhar para frente.
Se a Cela foi símbolo de promessa, que o futuro seja símbolo de realização. Porque as raízes, ainda que silenciadas ou feridas, têm força para renascer. Angola pode ser novamente terra de abundância e esperança — se tiver coragem de escutar o passado e transformar a memória em ação.
Soneto da Angola Sonhada e Por Vir
No chão da Cela ergueu-se a esperança,
café e gado em hinos de labor,
promessa ardente em fruto e em suor,
pátria que o sonho antigo ainda alcança.
Mas veio a guerra e trouxe a mudança,
calou-se o canto, ergueu-se a dor,
e a terra fértil, rica em seu valor,
ficou marcada em sombra e desconfiança.
Contudo a raiz resiste, não se apaga,
e mesmo ferida insiste em florescer,
no peito ardente a pátria se propaga.
Angola pode um novo amanhecer:
se a memória for chama que não vaga,
será futuro o que era só perder.
Chegámos ao fim desta travessia de memória e de futuro. Da Cela à Xitaka, de Angola aos Estados Unidos, da infância às gerações vindouras, cada capítulo foi pedra de um edifício feito de lembrança, dor, esperança e pertença.
O caminho não foi linear. Houve rupturas, exílios e silêncios. Mas também houve reencontros, raízes renascidas e palavras que se transformaram em pátria literária. A memória não foi aqui apenas evocação do passado; foi projeto de continuidade, herança que se oferece a quem vier depois.
Agora, resta apenas o silêncio solene da poesia, capaz de dizer em poucos versos aquilo que tantas páginas procuraram revelar. O Coda não é fecho definitivo, mas semente lançada. Porque a memória, quando escrita, não termina: floresce.
Coda — Soneto Final
A memória tornou-se a minha pátria inteira,
no exílio o coração guardou-se vivo,
do chão perdido ergui caminho altivo,
ponte que une a infância à vida inteira.
Na Cela ouvi da fé a voz primeira,
na Xitaka encontrei o rumo afirmativo,
na escrita fiz do tempo um gesto ativo,
herança justa, chama verdadeira.
Se a vida é rio que corre sem retorno,
nas suas águas deixo o meu sinal,
semente eterna a florescer no outono.
E ao entregar-me à história afinal,
sou pátria escrita em verso que contorno,
sou coração que fez do exílio altar final.
Última Linha
Escrevo para que a memória não se perca, e para que no coração de quem lê floresça a certeza de que mesmo no exílio nunca deixamos de pertencer.







