Explorando a Rica Cultura de Angola e Portugal

Construindo Pontes: Memórias de Uma Infância Multicultural em Angola
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Crescer em Santa Comba, no coração de Angola, foi uma experiência que moldou profundamente minha compreensão de comunidade, cultura e a importância da unidade. A cidade, mais tarde elevada ao estatuto de cidade numa cerimônia em que participei com orgulho como membro da Mocidade Portuguesa (MP), era um lugar onde as linhas de raça, cultura e origem frequentemente se cruzavam, tecendo um rico tecido de experiências e amizades partilhadas.
Meus pais eram proprietários de uma loja de secos e molhados, um verdadeiro ponto de encontro da cidade. Ali, pessoas de todas as classes e origens se reuniam para comprar mantimentos, mas também para trocar histórias e conversas. A loja era muito mais do que um negócio; era o coração pulsante da comunidade, um lugar onde se estabeleciam laços e se construíam pontes entre diferentes culturas e etnias.
Minha mãe, uma costureira habilidosa, trabalhava sem cessar em sua máquina de costura "Oliva", confecionando roupas a partir de tecidos africanos coloridos, escolhidos com carinho pelas clientes de diversas origens. Cada peça que ela criava era um reflexo do vibrante mosaico cultural de Santa Comba, e muitas das mulheres da cidade vestiam suas criações, simbolizando a união entre o tradicional e o moderno, o africano e o europeu.
Além disso, havia um alfaiate na parte de trás da loja, responsável pela confeção de roupas sob medida para os homens da cidade, reforçando o espírito de colaboração que definia o nosso negócio familiar. Ele reparava e criava peças com a mesma dedicação e esmero com que minha mãe costurava seus vestidos, ambos contribuindo para o caráter multicultural e colaborativo que Santa Comba encarnava.
A cidade também era conhecida por sua produção de laticínios. As fazendas ao redor de Santa Comba dedicavam-se à produção de leite, queijo e manteiga, e a fábrica local, chamada 'Empresa de Laticínios de Angola' (ELA), era um dos maiores empregadores da região. Lembro-me de ver os caminhões carregados com latas de leite que partiam das aldeias vizinhas, um testemunho da economia local e da vida rural que sustentava a nossa cidade.
Enquanto menino, vivenciei uma Santa Comba que, apesar das tensões políticas do período colonial e da iminente independência, conseguiu preservar um espírito de convivência e respeito mútuo. A comunidade era um microcosmo onde negros, brancos e mestiços compartilhavam não apenas o espaço, mas também as experiências. Um dos momentos mais marcantes foi a cerimônia de elevação de Santa Comba à categoria de cidade. Recordo-me claramente de me posicionar com orgulho ao lado dos meus colegas da Mocidade Portuguesa, todos nós em uniformes, sentindo o peso da responsabilidade e o orgulho de fazer parte daquele momento histórico.
A Mocidade Portuguesa desempenhou um papel importante na minha juventude.
Embora o regime do Estado Novo tivesse sua presença dominante, para nós, jovens, o MP representava disciplina, camaradagem e um sentido de dever. Durante as cerimônias de hastear da bandeira, ficávamos lado a lado, diferentes em aparência mas unidos por um mesmo propósito. Em uma dessas cerimônias, uma foto capturou o momento em que eu e meu amigo segurávamos a bandeira, nossos rostos solenes, mas nossos corações repletos de alegria por fazer parte de algo maior.
Os domingos eram um momento especial. Depois de uma semana ajudando meus pais na loja, eu corria até o cinema local para assistir aos filmes, muitas vezes os faroestes italianos de ‘Trinity’, projetados pelo meu amigo Arnaldo Almeida, que trabalhava no clube. Ali, no cinema, encontrávamos nossos colegas e, por algumas horas, esquecíamos o mundo lá fora. Era um espaço onde a diversão e a amizade transcendiam qualquer diferença de cor ou classe social.
A cidade também tinha uma profunda ligação religiosa. Meu pai, João de Deus Chaves, era um dos principais responsáveis pela construção da Igreja Nossa Senhora da Assunção. Ele transportava grande parte do granito, extraído de Morro Kungo, em seu caminhão, enquanto pedreiros portugueses esculpiam as pedras que dariam forma à igreja. Lembro-me das missas campais, quando a igreja ainda estava em construção, e de como meu pai vestia sua capa vermelha com orgulho durante as celebrações religiosas.
Eu fui batizado em uma sala de aula, pois a igreja ainda não estava completa, e aqueles momentos se tornaram memórias preciosas de um tempo em que toda a comunidade se unia em prol de algo maior. A construção da igreja foi um símbolo de fé, mas também de união, trabalho árduo e dedicação coletiva. Para mim, aquele esforço compartilhado representava o espírito de Santa Comba, uma cidade onde todos contribuíam para o bem comum, independentemente de suas origens.
À medida que refletia sobre esses momentos, percebia como a convivência com pessoas de diferentes culturas e etnias moldou minha visão de mundo. Santa Comba era, sem dúvida, um modelo de como a diversidade pode ser uma força unificadora. As amizades que fiz, os momentos que compartilhei com meus colegas da Mocidade Portuguesa, e o senso de comunidade que vivemos, tudo isso me ensinou lições valiosas sobre aceitação, respeito e a força da coletividade.
Hoje, em tempos em que as divisões parecem cada vez mais acentuadas, eu me apego às memórias de Santa Comba. A imagem de dois meninos — um branco, outro negro — segurando a bandeira com orgulho, lado a lado, é um lembrete poderoso de que o verdadeiro valor de uma comunidade reside em sua capacidade de abraçar a todos os seus membros, independentemente de suas diferenças. Minha história, enraizada na rica terra de Santa Comba, é um testemunho da beleza de uma sociedade multicultural e multirracial — uma sociedade onde a felicidade, a aceitação e a unidade não eram apenas possíveis, mas reais.
Santa Comba foi mais do que apenas um lugar de crescimento; foi o cenário de uma infância plena e repleta de significados. Cada canto da cidade trazia uma memória, e cada pessoa com quem eu interagia contribuía para minha formação como indivíduo e membro daquela comunidade multicultural. Apesar de ser apenas uma criança, eu já sentia que vivia num ambiente único, onde as barreiras que separavam as pessoas em outras partes do mundo pareciam mais frágeis ali.
A vida cotidiana era tecida de pequenos gestos que, olhando para trás, revelam uma grande riqueza cultural. Quando caminhava pelas ruas de Santa Comba, era comum ver crianças de diferentes etnias brincando juntas nas praças ou nas estradas de terra batida. Ninguém se preocupava com a cor da pele, e os laços de amizade eram formados naturalmente, através das experiências que compartilhávamos.
As manhãs começavam cedo. Ajudava na loja da família, onde aprendia o valor do trabalho duro e da convivência com clientes de todos os cantos da cidade e das aldeias vizinhas. Era um espaço vibrante, sempre cheio de movimento, onde se falava tanto português quanto línguas africanas locais. Minha mãe, sempre ocupada em sua máquina de costura, conversava com suas clientes enquanto transformava tecidos em roupas que contavam histórias. Cada vestido que saía da nossa loja era um reflexo da diversidade de Santa Comba — cores vivas, padrões africanos, e uma fusão de tradições que se entrelaçavam no dia a dia da cidade.
A educação também foi uma parte fundamental da minha vida. Estudava na Escola Industrial e Comercial Narciso do Espírito Santo, onde o ensino era rigoroso, mas inclusivo. Lembro-me com carinho dos professores que, apesar das dificuldades de recursos e das incertezas políticas, dedicavam-se com paixão a formar as novas gerações. Um dos momentos mais marcantes da minha vida escolar foi a participação na peça "O Processo de Jesus", onde interpretei João Batista. A experiência foi inesquecível, não apenas pelo papel em si, mas pela união que o teatro promovia entre os alunos, que vinham de diferentes contextos culturais e sociais. Naquele palco, éramos todos iguais, entregues à arte e ao coletivo, sem divisões.
Outro ponto central na vida de Santa Comba era a celebração das festas religiosas e culturais. A Festa do Divino Espírito Santo era uma das mais aguardadas do ano. As ruas se enchiam de alegria, música e procissões, onde todas as famílias, independentemente de sua origem, participavam com devoção e entusiasmo. Essas festas eram momentos de união, onde as diferenças se dissolviam em meio ao som dos tambores, das danças tradicionais e dos hinos religiosos. Eu, como um jovem integrante da Mocidade Portuguesa, muitas vezes ajudava a organizar essas celebrações, colocando lanternas ao redor do clube ou servindo as sopas típicas durante os almoços comunitários.
Além das festividades, a convivência com meus amigos negros, brancos e mestiços nas atividades diárias e escolares ajudou a cimentar uma visão de mundo baseada na inclusão e no respeito mútuo. Eram tempos desafiadores para o país, com os ventos da independência soprando fortes, mas em Santa Comba, havia uma bolha de esperança e otimismo que nos fazia acreditar que o futuro poderia ser construído sobre os alicerces da convivência pacífica.
Ao refletir sobre minha infância em Santa Comba, compreendo que fui privilegiado por ter crescido num ambiente onde a diversidade era parte integrante da vida. Cada interação, seja na loja de meus pais, nas cerimônias da Mocidade Portuguesa ou nas brincadeiras com meus amigos, contribuiu para moldar a minha identidade como um cidadão do mundo. A riqueza cultural que vivenciei naquela pequena cidade angolana continua a influenciar minha visão de mundo, mesmo muitos anos depois de ter deixado Santa Comba.
Hoje, ao compartilhar essas memórias, espero transmitir não só as experiências de uma infância feliz, mas também a importância de valorizar e proteger os princípios de diversidade e inclusão. Santa Comba foi, para mim, um exemplo vivo de que é possível viver em harmonia, onde cada cultura, cada história e cada pessoa têm um papel a desempenhar na construção de uma comunidade forte e coesa.
Em tempos de polarização e conflitos, acredito que as lições aprendidas naquela cidade angolana ainda são relevantes. Elas nos lembram que, independentemente das nossas diferenças, o que realmente importa é a nossa capacidade de encontrar alegria e propósito na convivência com o outro, de construir pontes em vez de muros, e de ver a beleza na pluralidade de vozes que compõem a nossa história coletiva.
Soneto: Santa Comba, Terra de União
No peito guardo a terra de saudade,
Onde o rio da infância ainda corre,
Santa Comba, cidade que socorre
A alma em busca da fraternidade.
Tuas ruas, de histórias entrelaçadas,
Uniram corações de todo chão,
De negros, brancos, filhos da nação,
Num laço eterno, em paz consagradas.
Ali se erguiam, firmes, as bandeiras,
De mãos diversas, num só gesto unidas,
Sem divisões, nem sombras traiçoeiras.
E hoje recordo as horas mais queridas,
Pois foi na infância, entre as brincadeiras,
Que aprendi que as almas são vestidas.
Este soneto traz à tona a nostalgia e a inspiração, refletindo o impacto profundo de uma cidade onde a diversidade foi não só celebrada, mas vivida intensamente. Santa Comba permanece viva nas memórias, tal como os versos de Camões que eternizaram histórias de amor pela pátria e pela humanidade.

















