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Ergui-me Sempre Quando Me Tentaram Derrubar Sem Nunca Desistir

ago 16

4 min de leitura

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A verdadeira arte da perseverança está em erguer-me sempre acima de todas as tentativas de me derrubar, de me diminuir, de destruir a minha essência e o meu compasso moral. Essa força não nasceu de um dia para o outro. Foi moldada na Cela, nas ruas tranquilas de Santa Comba, entre o cheiro da terra molhada depois das primeiras chuvas e a azáfama das colheitas, com sacos de milho, feijão e café empilhados à sombra dos armazéns.


Cresceu na convivência com vizinhos que se tratavam bem, nas lojas onde se vendia de tudo, desde panos coloridos a ferramentas, e nas tardes em que o sol parecia não ter pressa de se pôr sobre o planalto.

Nasci em 1959 no Hospital da Cela, ainda Angola era oficialmente uma província ultramarina de Portugal. A minha infância foi marcada por uma comunidade onde o trabalho e a cooperação eram a base da vida. Lembro-me das lojas, onde o colorido das bancas e o pregão dos vendedores enchiam o ar de sons e cheiros únicos. Recordo também a escola, onde colegas de diferentes origens partilhavam o mesmo quadro e o mesmo caderno, aprendendo lado a lado.


O ritmo da vida seguia as estações. Havia o tempo da lavoura, quando o campo exigia mãos firmes e dias longos. Depois vinham as colheitas, momento de recompensa e de partilha. E havia também o tempo das festas, quando a música e a dança reuniam todos, esquecendo por instantes as dificuldades.

Tudo mudou em 1975. Os Acordos de Alvor, assinados em janeiro, abriram caminho à independência, mas também a uma escalada de tensão e violência. As potências da Guerra Fria viam Angola como um palco estratégico e começaram a alimentar o conflito através de facões armadas. O equilíbrio social que eu conhecia desfez-se num curto espaço de tempo. A confiança entre vizinhos foi corroída pelo medo e pelo ódio político.


Eu tinha 16 anos quando percebi que não havia regresso ao que tínhamos. A decisão de partir foi dolorosa, mas inevitável. Lembro-me de arrumar os poucos pertences que podíamos levar, enquanto o silêncio em casa dizia mais do que qualquer palavra. A viagem para Lisboa foi carregada de incerteza. Portugal recebeu-nos com as suas colinas e o Tejo, mas também com uma crise profunda que deixava pouco espaço para acolher quem chegava com tão pouco.


Foi um ano de luta e adaptação. Trabalhei e estudei sempre que podia, procurando um caminho num país que se reconstruía a si próprio. Ainda jovem, decidi tentar mais uma travessia. Cruzei o Atlântico e aterrei nos Estados Unidos, onde tudo era novo e nada se conquistava sem esforço. Comecei por baixo, aceitei qualquer trabalho digno que me permitisse viver, e nunca deixei de aprender.


Licenciei-me em engenharia e construí uma carreira sólida na indústria tecnológica. Casei com Judy, construí a minha família, eduquei os meus filhos para serem cidadãos do mundo. De Angola trouxe a resiliência. De Portugal, a cultura e a língua. Da América, a oportunidade de provar que nenhum rótulo define quem somos.


Chamaram-me colono, como se essa palavra tivesse o poder de apagar anos de trabalho árduo, a dedicação de uma vida inteira e o contributo real para a terra onde cresci. Chamaram-me retornado, como se regressar, depois de ter sido forçado a partir, fosse sinónimo de fraqueza ou fracasso. Julgaram que esses rótulos me diminuiriam, que ficariam gravados em mim como cicatrizes de vergonha. Enganaram-se. Cada insulto tornou-se combustível para a minha determinação, cada palavra foi transformada em força para seguir em frente. No fim, não fui esmagado. Fui moldado no fogo das provações, endurecido pela perda e pela reconstrução, e elevado pela certeza de que a dignidade não se perde enquanto houver coragem para continuar.



Soneto


Se o vento agreste ousou rasgar-me o pano

E a fúria do mar quis ver-me rendido

Ergui-me mais alto, firme no sentido

Guardando em mim o sonho soberano


Chamaram-me nomes, fraco e insano

Mas cada injúria foi aço temperido

No fogo e na dor fui sempre erguido

Vencendo o destino rude e tirano


De Angola levo a chama que me guia

De Portugal, a voz que não se cala

Da América, a mão que o sonho cria


E se a vida inteira ainda me abala

Mais forte serei, dia após dia

Pois nada há que o meu ser destrua ou tala



Sonnet


If harsh winds tore the canvas of my sail,

And angry seas sought to bring me down,

I rose above, my purpose firm and sound,

And kept the dream no storm could ever pale.


They called me weak, their words a futile hail,

Yet each insult made stronger what I’d found;

Through fire and pain my strength still abound,

And harshest fate would never make me fail.


From Angola I take the guiding flame,

From Portugal, the voice that speaks with pride,

From America, the hand to shape my aim.


Life’s storms may shake me like the tide,

I’ll rise each day, unbroken all the same,

For nothing cuts the truth I hold inside.


Notas de Rodapé

1. O Hospital da Cela foi uma das infraestruturas de saúde mais importantes do planalto central angolano durante o período colonial, servindo tanto a população europeia como africana.

2. Angola deixou de ser “colónia” em 1951, passando oficialmente a “província ultramarina” de Portugal.

3. O ensino em Angola nos anos 60 e 70 seguia os programas escolares portugueses, embora a oferta de escolas secundárias estivesse concentrada nas cidades.

4. Os Acordos de Alvor foram assinados a 15 de janeiro de 1975 entre Portugal e os três movimentos nacionalistas (MPLA, FNLA, UNITA), estabelecendo a data da independência para 11 de novembro de 1975.

5. No contexto da Guerra Fria, Angola tornou-se alvo de intervenção direta de Cuba, União Soviética, Estados Unidos, China e países africanos vizinhos.

6. A guerra civil começou ainda antes da independência, com confrontos armados em várias cidades, incluindo Luanda, Huambo e Benguela.

7. Portugal, em 1975, vivia um período de instabilidade política e económica após a Revolução de 25 de Abril de 1974, com inflação elevada e crise de habitação, agravada pelo retorno de mais de 500 mil pessoas das ex-colónias.

Por João Elmiro da Rocha Chaves


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